Conto: Sábado à noite
Raoni
ansiava pela noite de sábado. Durante a semana, ele estudava publicidade de
manhã, e à noite apresentava dois programas na Rádio FM de Clarear: o “Clarear
Notícias” e, substituindo o radialista Netto nas férias, o “Sertanejo Clarear”.
Informar os fatos da cidade era um trabalho empolgante, mas tocar sertanejo no
por duas horas era dolorido aos seus ouvidos. Raoni já havia planejado ir com
seus amigos ao show de rock da banda Atroz, que não se apresentava em Clarear
com frequência. Desperdiçar as cortesias que ganhava da Rádio nem pensar. E
eram três!
Enquanto
dirigia a caminho do prédio Divina, onde morava, Raoni recebeu a mensagem:
“Estou te esperando na tua casa. Não demora”, apressava-o seu amigo Taveira.
Eram amigos próximos o suficiente para saber que um se instalava na casa do
outro sem avisar e pra saber que teriam uma discussão boba: Taveira era fã de
sertanejo, principalmente os mais atuais e não aceitaria ir ao show de uma
banda de rock. Porém, Raoni ganhou as três cortesias (três!), e iria fazer
valê-las.
Quase às
dez da noite. Baixou o vidro do carro e ao cumprimentar Estevão, o porteiro,
ouviu a seguinte observação:
- Chegou
bem na hora, seu Raoni.
- Na hora
de quê?
- Da
chuva. Vai chover um bocado. – previa, contemplando pelas grades do prédio, o
céu molhado de estrelas. Mas Raoni não se incomodou com o comentário do
porteiro metido a “garoto do tempo”.
- Pode
chover a noite toda, mas nada me impede de aproveitar esse sábado à noite! – e
entrou no estacionamento, apressado.
Ao abrir
a porta, Raoni sentiu o cheiro de pão quase sendo queimado no fogão. A
intimidade de anos de amizade levou Taveira à cozinha, junto com o pão, o
queijo, presunto, carne, alface, tomate, pepino e cebola. Por sorte, ele havia
lanchado na Rádio, porque os últimos pães de seu apartamento tinham sido
transformados em hambúrguer. “Você já tá todo arrumando e vai ficar fedendo a
queijo e presunto!”, reclamou Raoni. Taveira o respondeu apenas com um sorriso,
um abraço e despenteando os cabelos castanhos do amigo, que mal chegavam à
orelha.
Raoni
trocou de roupa em seu quarto, deixou os ingressos na cômoda e foi ao banheiro
com a toalha no ombro. Nesse instante, a porta se abriu. Mirian, a prima que
morava temporariamente com ele, saiu do banheiro, com os cabelos molhados e com
o costumeiro vestido preto de dormir. Como sempre, recebeu-o com o rosto
fechado, nada amigável. Às vezes, até esquecia que dividia o apartamento com
ela. Desempregada, perdeu a casa e os pais dela pediram ao sobrinho que a
recebesse em seu apartamento por um tempo, mas Mirian não era nada sociável. A
noite era o horário em que os dois primos mal se viam. Um sinal de “Ok!” era a
maneira de ela desejar “boa noite” e um dos poucos contatos entre eles. Depois
de tomar seu remédio para desviar a insônia, ela só acordaria às sete,
pontualmente, no dia seguinte. Ela, naquela última semana, conseguiu um
emprego, trabalhava quase o dia todo e à noite se trancava no quarto. Se
Mirian dormisse o dia todo, ele nem notaria a ausência dela.
Os
cabelos curtos, pretos, de mechas roxas, o rosto fino e o forçado sorriso de
Mirian espantavam qualquer pessoa que tentasse aproximação. Era de se espantar
que o último namoro tivesse durado tanto tempo: mais de um ano. Difícil de
entender como alguém aguentou aquele gênio. Mirian ia além de uma típica baixinha
enfezada. Era uma amarga, passava boa parte do tempo trancada no quarto, lendo
livros de terror ou na companhia de duas amigas ainda mais esquisitas. O cabelo
de uma delas, Cássia, não era mais curto que o de Raoni, um olhar vago e era
tão amável quanto a prima; a outra, Tábata, sorria amarelado, e tinha que se
abaixar cada vez que passava por uma porta do apartamento. Raoni não as proibia
de entrar em casa, mesmo porque os pais de Mirian ajudavam nas despesas, mas a
prima evitava qualquer contato com ele. A relação entre eles era desconfortante
e ele não entendia o porquê, já que gentileza e simpatia eram dois dos
atributos de Raoni. Mirian, no entanto, incorporava o mau humor e a antipatia.
O motivo de tanto desgosto com a vida era um mistério, assim como ele também
nunca soube como ela perdeu o emprego e como namorou por mais de um
ano. Vai ver o chefe e o namorado não suportaram a amargura dela e a
demitiram da vida deles.
Raoni não
levou nem meio minuto para pentear os cabelos. Na sala, foi abraçado por Dira,
sua vizinha e amiga, a pessoa mais serelepe que conhecia. Numa festa ou em
qualquer outro lugar, ela não permitia que ninguém ficasse parado e puxava os
amigos para dançar, por mais que não soubessem ou estivessem semiacordados. O
maior charme dela estava exatamente na área em que muitas pessoas, como os
próprios pais, criticavam: no corpo todo. Dira aceitava seu corpo com as
gordurinhas a mais, ignorando o falatório alheio.
- É
verdade mesmo? Você conseguiu três entradas para o show da Atroz? – Dira
perguntou, balançando as mãos de Raoni, sem parar. Ele confirmou e Taveira, de
boca cheira, os lembrou:
- A
Poliana vai com a gente, não esqueçam!
- Mas o
Raoni só tem três cortesias. – Dira, preocupada.
- Eu pago
o meu ingresso. – tranquilizou-os e abocanhou o hambúrguer.
- Aliás,
a Poliana está subindo. Acabaram de interfonar. – avisou Dira, voltando a
dançar.
- Espero
que a Poliana esteja mais animada. Ao contrário da Dira, ela prefere ficar em
casa a ter que ir pra qualquer lugar. Ela é estranha - disse Taveira,
mastigando o hambúrguer.
– Mas eu
consegui convencê-la! Vamos todos juntos assistir a banda Atroz! – comemorava
Dira, aos pulinhos de alegria.
- Eu
preferia curtir um sertanejo, mas... – Taveira se calou com um gole de suco de
acerola que estava na geladeira desde a noite anterior.
- Pra
mim, pode ser rock, sertanejo, funk, desde que a gente dance bastante! – a
garota dançava sozinha pela sala.
– E por
que você ganhou três cortesias? – Taveira perguntou, curioso. - Normalmente
você só ganha uma.
- Não
sei. O diretor disse na semana passada que iria guardar pra mim e me entregou
hoje... Teve gente que ficou com ciúmes, mas...
- Deve
ser porque você é o funcionário mais legal da Rádio Clarear! – idealizava Dira,
sorridente. Taveira quase se engasgou com uma gargalhada.
- Já são
mais de dez horas. – Raoni informou a eles. – Vou buscar os ingressos no meu
quarto, vamos esperar a Poliana e vamos ir embora.
- Eu
pego. – prontificou-se Taveira, limpando a boca no guardanapo. – Aproveito e
escovo meus dentes. – no meio do corredor, perguntou – Você ainda tem uma
escova de reserva, não tem? – perguntou o amigo mais folgado e Raoni
confirmou.
Assim que
Taveira voltou, puxou-o para um canto da sala, enquanto Dira abria a porta para
Poliana, e perguntou, quase murmurando:
- Raô,
aquela sua prima esquisita tá animadinha hoje, hein.
- Por que
você diz isso?
Poliana
foi até Raoni, abraçou-o e o beijou no rosto, abrandada.
- Ela tá
ouvindo música alta no quarto. Nunca vi isso. – assombrado, respondeu,
abraçando Poliana.
- Nem
eu... Ultimamente ela anda falante, sabe? No celular, mas falante.
- Ela
ainda toma aqueles remédios controlados para a insônia?
- Toma.
Ela tava com um vidrinho na semana passada.
- E ela
ainda te ignora, Raô? – Poliana perguntou, bocejando.
- Ainda.
Sendo sincero, eu já até desisti de ser legal. Não adianta nada. Como você
mesmo me disse uma vez: - direcionou-se a Taveira - “Gentiliza demais nem
sempre gera muita gentileza”.
- Ás
vezes eu até esqueço que ela mora aqui. - Poliana cruzou os braços.
- Mas vai
ser por pouco tempo.
Taveira
segurou firme o ombro de Raoni. A figura de Mirian surgiu ao lado dele, com uma
calça jeans e uma blusa de mangas compridas preta, os lábios pintados da mesma
cor e os cabelos soltos, com o celular nas mãos. A rigidez na voz dela os
travou de susto. Os quatro permaneceram mudos com o aparecimento e comentários
súbitos da prima esquisita de Raoni, mas alguém tinha que quebrar o gelo. Ela
não se vestia mais como quem iria tomar um remédio e cair no sono.
- Você
vai sair agora? – Raoni perguntou. Fria, Mirian respondeu:
- Não.
- Por que
não? Está uma noite linda! – Dira a contrariava, encantada. Mirian sorriu com
desdém e disse:
- Veja
pela janela.
Os quatro
obedeceram. Uma chuva torrencial castigava a cidade de Clarear. O vento
violentava as árvores e a chuva maltratava o que estivesse pela frente. Dira,
de imediato, fechou as janelas do apartamento e Taveira foi à cozinha pegar um
pano velho para secar o chão da sala que molhou com a chuva.
- Você
tinha ra... – Poliana se interrompeu ao perceber que a pessoa para quem ela se
dirigia já não estava mais na sala. Mirian voltava para o quarto. O jeito
bizarro de existir da prima de Raoni não o surpreendia, mas o aviso de que caía
um temporal os preocupou. Estevão estava certo. A noitada de sábado estava
quase perdida. Quase. Não seria uma chuvinha brava como daquelas que inundaria
os planos dos amigos baladeiros. No sábado à noite tudo pode mudar.
Fingindo
uma esperança íntima, Raoni os chamou:
- Bom,
vamos indo antes que a chuva aumente.
-
Aumente? Aumente? – Poliana repetia a pergunta, perplexa. Ela o arrastou para a
janela, encostou o nariz dele no vidro e o apontou para o alagamento na rua. A
escuridão e a chuva forte quase não os permitiam de ver nada. Um carro branco,
provavelmente um táxi, estava enguiçado; era só o que os olhos deles avistavam.
Um raio embranqueceu o céu e fez Raoni dar dois passos para trás. A rua lembrava
um rio. Poliana o olhou, tristonha. – Você não vai arriscar o seu carro nesse
dilúvio, Raô.
- Poliana
tem razão. – concordou Taveira. – Se a gente sair agora, é bem possível que a
gente esbarre com Noé por aí. - Poliana o desaprovou com um olhar ao ouvir a
piada sem graça e se jogou no sofá. Ela, entre os quatro, era a única
desanimada. Raoni se encostou nela e sentiu o perfume do seu cabelo crespo e
volumoso. O corpo magricelo da amiga o aconchegou no colo e, com suas mãos
gentis, bagunçou os cabelos curtos dele. A noite de sábado já estava uma
desordem.
Aflita
com a aflição de Raoni, Dira o levantou e tentou uma reanimação:
- Não
vamos mais sair de casa, mas podemos fazer uma festa aqui mesmo. Que tal? – sem
esperar resposta, continuou: - Eu pego o seu pendrive, que eu sei que tem muita
música agitada, a gente põe no som e...
-
Esquece, Dira. Emprestei o meu pendrive para uma colega da Rádio.
Dira se
calou, mas o desanimo não a venceu totalmente.
- Tá, mas
vamos por na Rádio, ou no celular... Mas no meu celular não tem tanta música...
Na TV a cabo, sei lá! A gente liga pra pedir uma pizza...
- Pedir
pizza como, Dira? – Poliana perguntou, sem paciência. – Ninguém vai entregar
pizza em lugar nenhum nessa chuva.
- Ah,
então vamos fazer um lanche! O Raô sempre tem comida gostosa aqui. Eu posso
fazer uns hambúrgueres. – Dira não desistia.
-
Esquece! – Raoni se virou para Taveira e deu uma (in)direta. – Alguém comeu os
únicos pães que tinham antes de eu chegar. – Taveira sorriu forçadamente. – E a
minha TV a cabo fica fora do ar com a chuva.
Poliana
suspirou, infeliz.
- Eu não
estava com vontade de sair de casa mesmo. – conformou-se Poliana, mas Dira, não
desistia.
- A TV a
cabo pode não tá funcionando, mas a internet tá. – lembrou Dira, com um sorriso
afoito. – Podemos assistir a um filme na Netlfix, ora!
- E comer
pipoca! – Taveira surgiu com um pacote de pipoca de micro-ondas. – E tem
cerveja na geladeira!
- As
cervejas são da Mirian.
Dira e
Taveira foram para a cozinha e Poliana e Raoni ficaram responsáveis de escolher
o filme. Não era o sábado à noite que ele planejava, mas... Poderia ser pior.
Poliana
cutucou o ombro de Raoni e apontou para o anúncio na imagem da TV: "Sua
conta está suspensa por falta de pagamento". “Era só o que estava me
faltando”, reclamou Raoni. Enfurecido, foi até o quarto de Mirian e bateu na
porta. A prima abriu imediatamente, guardando o celular no bolso, e, sem acender
a luz do quarto, deu a desculpa mais esfarrapada que ele poderia ouvir:
- Me
esqueci de pagar a mensalidade. Foi mal. – desculpou-se secamente e fechou a
porta.
- Foi
mal? Não se faça de besta. Você ficou responsável este mês. Foi o nosso acordo
desde que você chegou aqui: um mês pra... – Mirian abriu a porta e disse,
apática:
- Mas
vocês ainda tem a internet. Eu só não paguei a tal da Netf...
- Você é
sonsa, Mirian. Olha, eu... Eu até tento ser gentil, mas você não ajuda.
- Não
precisa fazer drama. – Mirian tirou um pendrive de um lugar invisível que
parecia ser uma cômoda e entregou ao primo. O celular dela tocou, mas o ignorou
– Assistam “Boneco do Mal”. Eu baixei essa semana.
- É de
terror?
- Com
esse título, você queria que fosse o quê? Animação da Pixar? É claro que é de
terror. Eu só vejo filme de terror. – respondeu Mirian, com um olhar ameaçador.
Raoni teve a impressão que a boneca do mal estava na frente dele. – Eu levo as
cervejas pra vocês, como recompensa pela mensalidade atrasada. – sugeriu,
carrancuda. - Me espera lá fora. – e fechou a porta na cara dele.
O saco
quente e melecado de pipoca passava de mão em mão. Taveira recebeu um tapa de
Poliana. Com uma mãozada, ele levava quase toda a pipoca. Os quatro amigos
estavam sentados nos sofás, com o filme no ponto, mas aceitaram esperar Mirian
com as cervejas servidas em taças, como Poliana exigiu. Por culpa da prima
estranha de Raoni, ficaram sem Netflix e teriam que ver um filme de terror,
gênero desprezado por eles. A única maneira que Mirian encontrou para se
redimir foi cedendo às próprias cervejas e fazendo pipoca para os quatro, ainda
que de má vontade.
A bandeja
foi posta em cima da mesinha da sala com uma violência proposital, quase
derrubando duas taças.
- Espero
que se afoguem com essa cerveja. – desejou Mirian, amargamente, pegando o
celular, logo em seguida, e saiu da sala com passos pesados.
- Você
são primos? Tem certeza? – perguntou Poliana, segurando a taça de cerveja. Os
quatro brindaram, mas Raoni foi o único que não levou o copo à boca. Ele se
levantou e foi até a janela, vislumbrando a imagem escura por uns altos
segundos. A chuva não cessara e eram quase onze da noite. Curtir o show de rock
ou de sertanejo já estava descartado dos planos deles. A banda só começaria
depois da meia noite, mas eles teriam que nadar para chegar na boat. Raoni
aceitaria qualquer festa e em qualquer lugar, desde que ele e os amigos se
divertissem naquela tão esperada noite de sábado. Tanta expectativa para
terminar assistindo a um filme de terror no sofá com umas míseras cervejas.
O
interfone tocou ele foi atendê-lo. Era engano. O vizinho novo ainda não
aprendera os números dos apartamentos. Espantou-se com o silêncio dos amigos e
voltou para a sala. Os quatro lutavam para manter os olhos abertos. A taça de
Taveira estava vazia, e a animação dele também. Poliana se rendeu ao sono e
Dira, para a surpresa de Raoni, estava tão ativa quanto a amiga. Raoni era o
único acordado.
Por fim,
Raoni secou seu copo com cerveja que já não estava tão gelada e sentou no sofá.
Não quis atrapalhar o sono dos amigos e deu o play no filme. A abertura se
passava e ele não conseguia acompanhá-la. Raoni se desafiava em permanecer
esperto. Os olhos pesavam e o sono o tapeou. Se ele fechasse os olhos, não os
abriria de novo.
Fecharam-se.
A
campainha tocou e Mirian correu para atender as duas amigas que Roani achava
mais esquisitas que a própria prima. Cássia e Tábata se espantaram ao entrar no
apartamento e encontrar os quatro jovens desmaiados de sono, um apoiado ao
outro, nos sofás. Cássia, que usava um vestido lilás e uma maquiagem gótica,
reclamou:
- Pensei
que essa chuva não fosse mais parar. O taxista nem queria entrar na rua! - e se
abaixou lentamente, olhando de Mirian para Raoni. Observando-os, perguntou:
- Como
você os fez dormir assim?
- Com o
remédio, ora...
- Você me
entendeu. – advertiu, cheirando um dos copos vazios.
-
Coloquei na cerveja deles. A tal da Poliana ainda exigiu que eu servisse, só
porque eu não paguei a...
- Eu não
sabia que o seu remédio era assim tão forte. – interrompendo-a.
- E é
forte, Cássia. – concordou Mirian, ranzinza.
- Mas só
uma dose não seria o suficiente para adormecê-los tão rápido.
Mirian a
olhava com triunfo, se contendo na risada. Tábata, que usava uma saia curta e
uma blusa decotada indiscreta que não combinava nada com a sua altura, estava
abismada.
- Se você
não deu o teu remédio, você deu aquele que... Mirian, você praticamente os
dopou! – concluiu Tábata.
- Você é
corajosa. E louca. – disse Cássia. - Seu primo vai ficar uma fera quando
descobrir.
- A noite
deles já estava uma merda. Só ajudei a dormir mais cedo. – Mirian deu de
ombros, com arrogância.
- Ainda
te acho corajosa. – insistiu Cássia. - E louca.
Mirian a
ignorou, entregando a elas as cortesias para o show da banda Atroz.
- Vamos
logo. Essas cortesias não podem ser desperdiçadas.
Antes de
saírem, Tábata perguntou, sem tirar os olhos dos sonolentos:
- Eu sei
que você não gosta do seu primo e... Nem de ninguém da sua família, mas... Não
é um exagero, Mirian?
- É
verdade. Ele sempre foi tão gentil com você. – aquiesceu Cássia.
Mirian
cruzou os braços, com um jeito antipático e displicente respondeu:
- Esse é
o problema do Raoni: ele é legal demais. Gentil demais. Simpático demais, quase
todos na minha família são assim. E pessoas assim me dão náuseas. Sempre se
preocupando com as outras, querendo agradar... – e bagunçou os próprios
cabelos. – E se vocês duas estão com pena deles, eu dopo vocês duas também.
Querem? – ambas negaram apressadamente. – Ótimo. Agora vamos. A noite de sábado
desses aí se perdeu no mais profundo sono, mas a minha... Está só começando.
Tábata,
temerosa, pediu à Mirian:
- Me
prometa que você não vai se encontrar com o... Seu ex.
- Não sei
do que você está falando.
Apreensiva,
Tábata fez outra pergunta:
- Por que
essa raiva toda do seu primo? Tem que ter um motivo!
- É
verdade. – concordou Cássia. – Não é apenas por ele ser um cara legal e você
tem aversões a pessoas legais. Tem um motivo por trás.
- Claro
que tem um motivo. Eu quero me divertir. Divertir! Não tem motivo melhor que
esse! Ou tem?
As duas
não responderam. E Mirian as chamou:
- Agora
vamos indo. Antes que a chuva caia de novo.
Os braços
cruzados de Mirian eram a melhor demonstração de incômodo enquanto todos,
naquela casa de shows apertada, pulavam, berravam e cantavam para a banda de
cinco rapazes que ela nem lembrava o nome. O guitarrista se destacava por ser o
mais novo entre os demais músicos. Mas Mirian não sentia a mesma empolgação que
Cássia e Tábata. E sem que elas percebessem, foi mais para o fundo,
distanciando-se do palco. Ela esperava que o celular vibrasse. Cinco minutos e
sentiu a tremedeira na bolsa.
Já do
lado de fora da casa de shows, um motoqueiro esperava por Mirian. Ela o
reconheceu pelo conjunto preto, de calça e jaqueta e um capacete da mesma cor.
- O que
você quer? Cadê o...? – o motoqueiro perguntou.
- Me leva
para perto do terreno baldio. – Mirian o interrompeu e se sentou na moto. Ela
segurou na cintura dele e correram com o vento. Estavam próximos do terreno,
numa rua com poças de lama, taciturna, do jeito que ela queria. Com o celular
em mãos, Mirian deu um toque para o último número registrado em “ligações
realizadas”: Natasha.
Desceu da
moto, mas o motoqueiro apenas a desligou. Tirou o capacete, revelando seus cabelos
longos e bagunçados. O rosto espinhento e suado não lembravam aquele rapaz
atraente que Mirian conheceu há pouco mais de um ano. Os lábios estavam feridos
e havia uma marca de sangue no queixo. Nem seus belos olhos verdes mais a
encantaram. Mirian sentiu vontade de tocá-lo, mas também sabia que não valeria
a pena. Ele não merecia.
A rua não
sibilava e o vento agarrava os braços desprotegidos de Mirian. Ela não podia
perder mais tempo.
- Não era
pra você estar aqui, Mirian. – bravejou o motoqueiro, enfezado. – Cadê o seu
primo?!
- Fala
mais baixo, Gravo!
Abnegando-a,
ele voltou a perguntar:
- Cadê o
seu primo?! Não era pra você estar aqui! Era pra ele e os amigos dele estarem
na boate, como nós combinamos! E não você!
- Eu sei,
Gravo, mas... – Mirian mexeu nos cabelos curtos e, destemida, explicou: - Eu
pensei melhor e desisti do nosso plano. Eles estão no apartamento.
- Como
“desistiu do plano”? Você comprou o outro remédio, não comprou? Você só tem que
jogar na bebida deles quando eles estiverem saindo do show e...
- E não!
– gritou, mais corajosa. Com medo, reclinou e baixou o tom de voz. – Eu desisti
do plano, Gravo!
- Você
não pode ter desistido do plano, Mirian! – e se levantou da moto. – Foi você
que teve essa ideia.
- Eu sei,
mas me arrependi. Me arrependi hoje mesmo, Gravo. – Mirian notou o volume no
bolso esquerdo dele. Gravo não brincou quando disse que viria armado. - Olha,
meu primo é um saco, mas acho que eu exagerei em querer assustá-lo desse jeito.
Gravo pôs
os cabelos longos e sujos para trás, aborrecido, deixou o capacete na garupa da
moto e puxou Miriam pelo braço:
- Nós
íamos conseguir uma grana boa com o seu primo e os amigos dele, você sabia! E
íamos dar um sumiço! Ninguém ia perceber nada. Você sabe que eu não ia dar
mancada! Eu tô nesse mundo faz tempo.
- Pois
é... Esse é o problema: o mundo que você entrou! – ela se soltou,
recompondo-se. – A intensão era assustar, não dar um sumiço neles, Gravo! E
eles nem tem tanto dinheiro assim!
- Mas
você aceitou! E o plano era perfeito! Eles iam perder a consciência em
segundos, assim que você trocasse a bebida deles, eu iria esperá-los lá próximo
a boate e você...
- Gravo,
o seu plano é a maior furada! Como que eu ia convencê-los de...
- Você
iria dar seu jeito! Você é muito esperta quando quer!
- Mas eu
me arrependi depois! Eu tenho o direito de me arrepender!
Mirian
andou para trás, amedrontada, quando Gravo a pegou pelo braço mais uma vez, com
uma das mãos, e com a outra retirou algo brilhante, afiado e maior que o facão
que Raoni usava para cozinhar. Ela pôde ver uma sombra por trás dele, e se
acalmou. E, com seus olhos esverdeados fixos nos olhos escuros dele, falou:
- Você é
uma esquisita. Covarde! Eu tinha planos para esse dinheiro!
- Você
fala como se meu primo e os amigos dele fossem cheios da grana! Não são! Iam
ter o máximo pra uma festa!
- Já
seria muito. E nós íamos dar-um-sumiço neles!! Era esse o nosso plano!
- Mas eu
já tenho planos para essa noite.
A paulada
que Gravo levou na cabeça quase o jogou para cima de Mirian. Um baque soou
quando ele espatifou na poça de lama. Apesar do grito de dor e do sangue
escorrendo no couro cabeludo, ele ainda conseguiu se mover. Mas a pisada que o
atingiu na cabeça o tirou a consciência mais uma vez. Mirian assistia a tudo
atentamente. A pisada seguinte, no entanto, o estalou os braços de Gravo e mais
a fundo, a cabeça. Foi ainda mais forte. Fatal. Mirian olhou para o lado e
perguntou:
- Psiu! –
a moça de longos cabelos verdes se mostrou por debaixo do capuz e tapou a boca
de Mirian com a mão suja. – Não pronuncie meu nome!
- Esse
nem é o seu...
- PSIU!
Natasha,
com suas luvas de couro marrom, pegou o capacete da moto de Gravo e bateu
outras três vezes com mais brutalidade. Mais sangue escorria e elas
enxergaram uma rachadura na cabeça dele.
- Pronto.
Ele não vai mais perturbar você e seu primo. – e sorriu para Mirian. Natasha
usava uma roupa semelhante a do rapaz cujo corpo estava estirado no chão.
Cobriu os cabelos verdes com um capuz e ordenou: - Você demorou muito. Fiquei
aqui há mais de uma hora te esperando. Tive que me esconder daquela chuva.
- Ele
demorou a aparecer. – justificou Mirian.
-Tá,
vamos voltar pra boate agora. Antes que a polícia apareça por aqui. – e puxou
Mirian pelo braço. Ela também andava numa moto e carregava dois capacetes
batidos. Até chegarem em frente à casa de shows não disseram nada. Mirian
pensava no que acabava de acontecer. E que não se arrependeu em nenhum
instante. Gravo mereceu. Estava com a consciência tranquila.
-
Obrigada, Natasha. Eu não aguentava mais o Gravo no meu pé. – agradeceu,
sentada, com a moto em alta velocidade, mas esperou que chegassem na boate para
falar.
Mirian
saiu da moto, entregou o capacete e Natasha respondeu:
- Na
próxima vez, escolha melhor seus namorados. E quando vocês terminarem, que
sejam apenas ex. E susto é só um susto. Não é preciso "dar um sumiço"
na pessoa. Entendeu?
Mirian
assentiu.
- Você
diz isso, Natasha, mas adora esses serviços, não é?
Natasha riu
e concordou com um sorriso de triunfante:
- Na
verdade, nunca entendi o que realmente aconteceu entre você e o Gravo e por que
vocês terminaram.
- É
melhor nem saber... E o Murilo?
Lastimosa,
Natasha respondeu:
- Sinto
falta do Murilo, mas... Bom... Gostei das mechas roxas no seu cabelo... -
guardando o capacete usado por Mirian na garupa e o amarrando - Mas, então, eu
vou embora antes que a polícia me descubra e eu tenha que mudar a cor do meu
cabelo outra vez. Foi bom ter vindo aqui em Clarear... E você, quer que eu te
deixe no apartamento do seu primo?
- Não,
não.
- Vai
ficar aqui ainda? Aqui na boate?
- Claro
que vou. Me livrei do namorado louco, mas meu primo ainda é um chato e tá num
sono profundo ao lado dos amigos dele agora.
- E ele
vai demorar horas pra acordar...
- Exato!
- Você
vai ficar pra curtir o show, então? - pondo o outro capacete na cabeça.
- Claro
que vou. Eu entrei com cortesia e... É sábado à noite, Natasha. Quer motivo
melhor para eu me divertir? Agora que a minha noite vai começar!
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[1] Para entender melhor de onde surgiu Natasha, leia: http://victorvictorio.blogspot.com/2015/11/conto-furia-de-natasha.html
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