Conto: A namorada de um amigo meu
Inspirado na canção de Roberto e Erasmo Carlos, "A namorada de um amigo meu".
Conto: A namorada de um amigo meu
O meu prazeroso
bocejo anunciava o sono quase vencido. A minha cama confortável, meu
travesseiro fofo e a escuridão que se alojava no meu quarto não me permitiam
mais nenhum segundo de esperteza. Tia Dália dormia no quarto ao lado, num ronco
de motor de navio. Fechei os olhos e senti o cansaço massagear a cabeça e me
transportar para a sonolência. Nada, nada poderia me arrastar dali. Quase nada.
Meu celular estava ao meu lado. Tocou irritantemente. Olhei para a tela e li:
“Luso”. Era o tipo de amigo sem-noção: me ligava às onze da manhã e às onze da
noite; às três da tarde e às três da madrugada... Minha culpa. Intimidade causa
confusão massa cefálica das pessoas.
- O que é, Luis
Sobral? – inquiri, tentando recobrar o sono. A resposta seria a de sempre:
ele só queria conversar. Por estar entediado ou com insônia,
sempre ligava para o amigo idiota. Isso mesmo, estou falando de mim.
- Ah, se você disse
meu nome completo e não o meu apelido é por quê...
- Porque eu tô puto.
Quero dormir. – eu pretendia desligar.
- Não. Isso quer
dizer que você não está com sono e vai conversar comigo. – concluiu, errônea e
cinicamente. Bocejei, decidido a me despedir. – Mas não vamos conversar por
telefone. Você vai vir aqui na minha casa. Agora. Agora, Plínio.
Ainda deitado, com os
olhos fechados e o sono me dominando, brinquei:
- Okay, a conversa tá
legal, mas eu vou dormir. Boa...
- Quero te apresentar
a Kauanne. Minha namorada.
A palavra “namorada”
me espertou. Sentei-me na cama, massageando o rosto para afugentar o sono, e
pedi mais explicações. Mas Luso se recusou, exigindo que eu saísse de fininho,
sem fazer barulho, enfrentasse a rua soturna, dobrasse a esquina, desse mais
alguns passos e tocasse a campainha da terceira casa à esquerda. Eu não tocaria
a campainha porque ele já estaria me esperando, e para falar da Kauanne, a
novata do curso de inglês, que eu nunca a vi, mas já a conhecia só de ouvir o
nome dela sempre que meu amigo e eu nos encontrávamos. Ele não estaria em paz
enquanto não ficasse com ela.
Ir às duas da manhã à
casa de um dos meus melhores amigos ou ir às duas da manhã à casa de um dos
meus melhores unicamente para conhecer a nova namorada dele? O que seria o mais
absurdo? O mais absurdo foi eu ter vestido uma camisa, pegado o meu chaveiro,
fechado a porta, orando para que nenhum assaltante surgisse no meu caminho,
dobrado a rua e me deparado com Luso sentado na varanda da casa. Havia uma
garota ao lado dele. As mãos dos dois estavam mais unidas que o sol e a lua.
Aquela deve ter sido a primeira vez que Kauanne e Luso conversavam e já estavam
namorando. Andei mais rápido. Os dois me enxergaram e se levantaram.
O sorriso radiante de
Luso falava por si. Eu não saberia dizer há quanto tempo eu não o via tão
feliz. Porém, não foi isso que me chamou atenção. O nome era singular: Kauanne,
assim como a beleza. Os lábios dela sorriam vagarosamente quando eu me aproximava,
formando um rosto angelical e um queixo proeminente. Os olhos de Kauanne me
diziam que ela também se considerava uma corajosa por estar ali, depois das
duas da manhã, namorando um cara que ela acabara de conhecer. As sobrancelhas
se levantaram atentas e seus dentes tão bem alinhados se igualaram em
amabilidade. Me abraçou, como se
fossemos amigos de longa data.
- Essa é a Kauanne,
minha namorada. – anunciou Luso, orgulhoso. – E esse é o Plínio...
- Um dos seus
melhores amigos, já sei. – terminou Kauanne, abraçando-me, e rindo da situação.
- Luso falou muito de você. Muito... – rindo outra vez. Ela ria com
facilidade... Eu tinha pouca paciência com pessoas falantes, mas não estava
achando ruim.
O casal de namorados
voltou para a varanda e me chamou para sentar ao lado deles. A rua estaria
deserta se não fosse por alguns taxis que corriam apressadamente. Abrilhantando
a noite, a lua fazia companhia ao meu amigo e a sua simpática namorada.
Na minha cama, era
onde eu deveria estar. Mas Luso estava louco para namorar novamente e me
apresentar a sua namorada o faria feliz. O último namoro o trouxe feridas
difíceis de curar, mas não impossíveis. Uma nova garota, um novo amor,
tranquilizaria o coração de Luso.
Kauanne não era a
primeira namorada que Luso me apresentava. Com seus 19 anos, meu amigo namorava
uma garota diferente a cada dois meses, e eu, com a mesma idade, namorei
apenas... Ah, deixa pra lá. O curioso era que pela primeira vez eu senti uma
pontinha de inveja. E incômodo. A presença dela me intimidava de um modo
estranho, e eu não conseguia desenvolver assunto nenhum na presença deles.
- Eu não acredito que
você veio até aqui, a essa hora da madrugada, só para me conhecer! – Kauanne,
num tom de voz como se estivéssemos em festa agitada.
- Para conhecer você:
minha namorada. – retificou Luso, beijando-a carinhosamente. Meigamente. E
enjoativamente. Eu estava acostumado em ficar de vela par Luso, mas aquela vez
foi o oposto. A inveja bateu mais forte. Os lábios de Kauanne combinariam nos
meus também. Meus pensamentos me levavam a um beijo existente.
- Não faça seu amigo
de vela, Luso. – reclamou Kauanne, nem um pouco brava, e voltou a beijá-lo.
Para quebrar aquele clima chato, parabenizei-os.
- Fico feliz pelo
namoro de vocês. De verdade.
- Eu sei que fica. –
Luso estendeu a mão para que eu a pegasse. Cumprimentamo-nos com um aperto de
mão e com um encontro dos dois punhos fechados, enquanto os dois ainda se
beijavam. Tentei quebrar o gelo novamente. Porque eu já me imaginava no lugar
de meu amigo. Imaginava o gosto do beijo da namorada dele.
- O último namoro de
Luso não deu nada certo. Espero que você o faça feliz, Kauanne.
- O meu também não. Mas
é passado. Prefiro esquecê-lo. – ela disse, evasiva. Toquei no ponto fraco.
- E vai esquecer. –
Luso a beijou novamente e ela se levantou.
- Vou entrar para
tomar água, tá legal, gatinho?
- Tá legal, gatinha.
– e jogaram um beijo ao vento. Luso se virou para mim e, ansioso, me dando
socos fracos no ombro, perguntou:
- Pode dizer: ela é
linda, não é? Pode dizer, pode dizer. Ela é ou não é linda?
- É, é sim.
- É linda. Kau é
linda. Ela é mais que linda. Ela é...
- Apaixonante. –
conclui e me arrependi na mesma hora. Luso não percebeu a minha franqueza e
concordou, sorrindo. Tocou no meu ombro e agradeceu:
- Valeu por ter
vindo, cara. Eu queria que você conhecesse Kauanne. Tô louco por ela. E espero
que vocês dois se deem bem.
- Eu também espero.
Um namoro que se
preze é composto apenas por duas pessoas, tanto faz os sexos, o namoro é
composto entre duas pessoas somente. Porém, Plínio nem sempre entendia isso.
Ele dizia que nós dois éramos uma dupla, e por isso eu tinha que acompanhá-lo em
quase todos os encontros com as namoradas. Algumas se divertiam até mais comigo
do que com ele. Meu amigo era grudento demais. Quando ele não me chamava era
porque havia uma coisa que ele gostaria que acontecesse apenas entre ele e a
garota: sexo. Nessa hora, ele me queria o mais distante possível. Eu também
preferia me manter quilômetros de distância.
Luso tentava me
arrastar pra passar um tempo com ele e Kauanne. O primeiro encontro, depois
daquela madrugada, foi decepcionante. Eu não sabia como me comportar. A risada
incontida dela, quando abafava com as mãos e depois mexia nos cabelos... A
dança rebolada que fazia quando ouvia uma música agitada... A alegria que
sentia quando nos vencia no UNO... O abraço que deixou o perfume na minha
camisa. Uma única tarde foi o suficiente para que eu evitasse as próximas
saídas. As minhas desculpas eram as mais esfarrapadas possíveis. Desde que eu
me apaixonei por Susan, havia muito tempo, eu não sentia algo parecido. Com
Susan não fui correspondido. Assim como eu não seria com Kauanne. Não me
declarei à Susan porque tive medo de levar um fora. E assim seria com
Kauanne.
Tia Dália veio até
meu quarto quando desliguei o celular. Eu cancelei um décimo convite para sair
com Luso e Kauanne. Ela se sentou na cama ao meu lado, afundando-a com seu peso
levemente pesado, e, preocupada, me abraçou, sufocando-me.
- Também gosto muito
da senhora, tia. – eu retribuí o abraço inesperado. Ao me soltar, perguntei: -
Mas... Por que esse abraço?
- Por quê? É a
primeira vez que você se oferece a me ajudar no serviço de casa.
- Ah, tá.
- Plínio, você nunca
se prontificou a me ajudar no serviço doméstico. Você tá doente, tá? Me diz o
que tá acontecendo. – pedia, apreensiva. – Eu sei que não sou seus pais, eles
não moram aqui, mas fique à vontade pra conversar comigo. Desabafa, filho.
A frase “Desabafa,
filho” era o que eu precisava e eu não tinha consciência. Havia dois anos que
eu não morava com meus pais, a figura mais próxima a um irmão era Luso. Ele não
era o mais adequado para eu chorar litros de sinceridade, naquele caso.
- Certo, tia... Eu...
Eu tô apaixonado pela namorada do meu melhor amigo.
Soltei, sem delongas.
Tia Dália piscava emudecida. Ela cruzou os braços e depois descruzou. E, como
se estivesse surda, perguntou:
- Oi? Você está
apaixonado pela namorada do Luso?
Titia me olhou
ofendida. Afundou a cama mais uma vez, cruzou os braços, de um jeito como se
fosse a dona e proprietária da sabedoria universal.
- Você e o Luso não
se encontram mais desde você saiu de madrugada para conhecer a namorada dele,
acho que vocês ainda saíram juntos uma única vez...
- Mas eu não disse
que tinha saído de madrugada... Como a senhora sabe...?
- Eu tenho sonho
fácil, esqueceu? E você não é tão sutil como pensa. Pois bem, eu te ouvi dando
desculpa para não ir encontrar com ele e a namorada e já ouvi algumas outras
vezes. Como essa de hoje: você nunca se ofereceu para me ajudar em casa. –
concluiu, com um olhar de quem carregava experiências na vida. Tia Dália me
convenceu.
Me rendi.
- Tá, tia, então... É
isso. Eu... – com o desespero entalado na garganta, arrisquei: - Desde que eu
vi a Kauanne, tia, naquela madrugada, eu, eu... Eu fiquei doido. Não me
concentrei em mais nada que não fosse o sorriso, a gargalhada, o jeito dela...
Ela... Ela por inteira. E ela é a namorada do meu melhor amigo. Eu sei que isso
é errado, mas nem mesmo sei como isso aconteceu.
- Plínio, você tá bem
ferrado, sabia?
- Obrigado pelo
apoio, tia – agradeci, ironicamente - Tia, eu sei que outros amigos nossos já
perceberam, mas eu tento disfarçar pra ninguém notar. Mas eu... Eu não sei mais
o que faço pra ninguém saber que estou gamado assim, porque se eles, se eles
souberem? O que eles vão pensar? Vou pensar que eu sou um fura-olho, né? Eu não
quero que me chamem assim! Tia, eu não quero gostar dela. E se a nossa amizade
acabar? E se...
- PARA! – gritou tia
Dália, segurando-me pelos braços para tentar me acalmar. Ela olhou para o
relógio e arregalou os olhos ao verificar o horário. - São perguntas demais! Tô
ficando tonta! – ela me largou, mais calma. Sabiamente, inquiriu: -
Quer um conselho? – eu assenti. – Assim que tiver oportunidade, conversem, diga
a verdade, se afaste por um tempo, mas seja sincero. Perca a garota, mas não
perca o amigo. Há só uma coisa pior que perder uma amizade: perder pai e mãe.
Então, não faça bobagens.
A casa estava uma
imundície! Minha tarefa era a varrição e a de tia Dália era passar roupas. Eu
pensava numa justificativa que me desse menos trabalho para a próxima vez que
meu melhor amigo e a bela namorada dele me chamassem para sair. A minha coluna
implorava para que eu largasse a vassoura quando a campainha da casa tocou.
Cantarolando “O meu amor virou brinquedo pra ti/ põe na minha boca o mel, logo
em seguida o céu”, tia Dália atendeu a porta, e com um “Ops”, me chamou. Era
Kauanne.
A bela morena e
namorada de Luso cumprimentou tia Dália com um “Oi, tudo bom?” e, sem esperar
resposta, entrou com andar minucioso para não atrapalhar a limpeza e foi até
mim. O cheiro de shampoo me forçou um suspirou e a minha suspeita estalou com
as intenções dela: “Posso conversar com você um minuto? No teu quarto”.
Tia Dália permitiu
que eu fosse ao meu quarto com um gesto, me expulsando da sala e com um olhar
pediu pra eu não fazer nada que eu fosse me arrepender depois. Fechei a porta
do quarto e, segurando as mãos no bolso, timidamente, perguntei:
- Tudo bem, Kaunanne?
- Quem te faz essa
pergunta sou eu.
- Por quê?
- Por quê? Você nos
evitou todo esse tempo. Te convidamos pra várias coisas e você negou todas. Mas
o que soou mais estranho para o Luso foi você ter recusado sair conosco para
ajudar a sua tia no serviço de casa. O Luso disse que você mal lava a louça,
Plínio! O que tá havendo?
- Kauanne, eu prefiro
conversar sobre isso com o Luso.
- É sobre mim? –
inquieta, segurou as minhas mãos – O problema sou eu?
Como eu poderia ter
problema com uma garota que agia com a meiguice incorporada na alma?
Inocentemente preocupada, ela me encarava. As pequenas bolas dos olhos pretos
da namorada do meu melhor amigo me penalizavam os sentidos. Não era pena que eu
sentia. Era uma atração insana, incompressível. Sem pedir permissão, peguei-a
com firmeza pelas costas e trouxe seu rosto para o meu. Sua boca para a minha.
A suavidade que Luso
sentia eu pude sentir. Kauanne ainda tentou me empurrar, mas eu a segurei com
mais força e ela desistiu. Minhas mãos tocaram o cabelo macio e o trouxe para
junto de mim. Nosso beijo pausou pelo mínimo instante que me censurei por
beijar a namorada de meu melhor amigo. Ela teve a chance de me soltar, mas não
o fez. Foi uma permissão. Meus lábios voltaram a se enroscar nos lábios dela
com o peso zero de consciência. O mesmo gosto, o mesmo tesão que Luso sentia eu
também sentia ao envolver o corpo de Kauanne no meu. O suor dela, depois de ter
caminhado pelo sol escaldante, desaguou nas minhas águas corpóreas. Era errado?
Era. Porém, que mal havia? As consequências são só consequências.
O juízo, por fim, me
puxou as orelhas. Soltei-a e a olhei nos olhos. Olhos nos olhos. O
arrependimento alagou minhas veias sem secar. Os meus lábios ainda molhavam de
vontade de sentir os lábios de Kauanne de novo, mas eu seria forte o suficiente
e iria resistir. A traição já tinha acontecido e eu me decepcionei com a minha
atitude. Luso não merecia um amigo como eu, e nem uma namorada como Kauanne.
Ninguém merecia.
- Não era pra eu ter
feito isso. Não era pra eu ter feito isso... – eu repetia. Segura si, Kauanne
pedia calma.
- Era isso que você
queria não, era?
- Era... Quero
dizer... Não.
- Era. Eu percebi
desde que nos conhecemos.
- Você...
- Sim. Eu sou mulher.
E mulher é muito mais atenta que vocês.
- Pode ser... Mas...
- Eu matei a sua
vontade. Mas fique despreocupado, Plínio.
- Como eu vou ficar
despreocupado? Eu beijei a namorada do meu melhor amigo. Eu, eu... Isso não é
coisa que se faça. Ele precisa saber. E ele vai me matar!
- A gente vai
terminar, Plínio. Eu vou terminar com o Luso. – anunciou, serena e eu fiquei
alarmado. Luso, que não era a favor de violência, não se controlaria em me
arrancar uns dentes.
- O quê? Se você
fizer isso ele vai me esganar! Me trucidar! Ele vai dizer que roubei a namorada
dele! Por que eu fui gostar de você? Por quê?
- Ei, calma! Calma! –
Kauanne pedia, me levando até a cama. Afastei-me dela, arrependido pelo beijo.
Ainda não inventaram um método de voltar no tempo, infelizmente, senão eu já o
teria feito e... E nada. Eu a teria beijado do mesmo jeito porque eu estava
louco pra fazer isso. Se eu pudesse voltaria no tempo para beijá-la outra vez.
Num rompante de
loucura, gritei:
- SAI DAQUI.
- Ham?
- Sai daqui, Kauanne!
Saia da minha casa! – expulsei-a.
- Por que você está
me expulsando?! – perguntou, revoltada.
- Porque eu ainda
quero te beijar e sei que isso é errado, então...
Sem aviso prévio,
Kauane me beijou outra vez. Ela e eu não merecíamos o perdão de Luso, mas se já
havíamos nos beijado, qual seria o problema em repetir? Kauanne me jogou na cama,
sem me soltar os lábios e se lançou por cima de mim. A minha camisa suada foi
retirada e arremessada para cima da cômoda. Aquilo era insano. De forma alguma
poderia acontecer. Mas iria acontecer. Estava acontecendo.
- Luso não precisa
saber disso, Plínio.
- Mas eu vou contar a
ele, Kau. Não é justo, não é...
Minha boca se calou
com outro beijo. Ela foi mais forte: eu não iria contar nada do que aconteceria.
Nada. Até porque não aconteceu nada. Graças a minha tia, que abriu a porta sem
nenhuma discrição. Kauanne saiu de cima de mim de imediato. Ela ficou branca.
Bege. Azul. Ficou colorida. Tia Dália simplesmente ordenou: “Saia”. E a
namorada do meu melhor amigo saiu, sem olhar pra trás.
- Eu só não te dou
uma surra porque não sou sua mãe, mas a minha vontade é essa, Plínio. Trair seu
melhor amigo? Por pouco vocês não transam!
Eu merecia ouvir.
Merecia.
- Estou decepcionada,
Plínio.
- Eu também, tia. Eu
também.
De castigo, titia me
obrigou a fazer todo o serviço de casa por uma semana, ainda que Luso me perdoasse.
Mas para que ele me perdoasse ou não eu teria que chamá-lo para conversar, eu
não tinha coragem para isso. Não tinha vergonha na cara. Meu arrependimento só
não era maior que a minha vergonha. Eu destruí uma amizade de anos por causa de
uma garota. Eu não era melhor amigo dele, nem de ninguém.
Terminei de secar a
louça e meu celular tocou. Era Luso. Ainda não era tão tarde da noite. Faltava
pouco para às onze. Atendi o aparelho, trêmulo. “Vem aqui em casa. Precisamos
conversar”. Desligou. Kauanne contou tudo. Aquela era uma noite que eu apagaria
da minha memória, porém não havia como fugir. Fui homem o suficiente para
beijar a namorada do meu melhor amigo, então tinha que ser homem o suficiente
para pedir desculpas a ele. Ou levar um merecido soco na cara.
- Boa sorte, seu
traíra. – desejou-me minha tia.
Meus pés caminhavam
lentamente em direção à casa de Luso. Poderia trovejar ou chover ácido no meio
do caminho para me impedir de chegar até ele. Coragem. Eu tinha que ter
coragem. E ser honesto, já que a burrice foi feita. Logo que me viu, Luso,
sentado no chão da calçada, apontou para o lado para eu sentar. Encostei meu
traseiro no chão e ele começou:
- Kaunne terminou o
namoro.
Silêncio.
- E você sabe por
quê?
Silêncio.
Luso suspirou
tristemente.
- Você lembra que eu
disse, na noite que os apresentei, que ela queria esquecer o último namoro? E
que eu a ajudaria a esquecer? – eu assenti – Pois é. Mas não consegui. Kauanne
ainda gosta do ex. Os dois se encontraram hoje mesmo e ela preferiu terminar comigo.
Achou que não seria justo. – contou, mordendo os lábios para não chorar. Porém,
meu amigo foi mais forte. Bagunçou os cabelos, levantou-se e sorriu: - Mas
fazer o quê? Ficar chorando, mais do que eu chorei hoje à tarde não adianta. –
e soltou uma risada.
Levantei-me, fiquei
bem em frente a ele, que sorria idiotamente. E, com o coração amedrontado,
perguntei:
- O que você faria se
eu te disser que beijei sua namorada?
Luso riu de novo e respondeu,
como se tivesse escutado a maior babaquice:
- Eu não acreditaria.
- Mas é verdade. Eu
estou falando sério. Luso, eu fiquei a fim da Kauanne desde que a conheci, por
isso eu evitei tanto de sair com vocês. Eu fiquei fascinado por ela. E hoje à
tarde ela foi lá em casa e... Nem sei o que ela foi fazer lá...
- Eu pedi pra que
Kauanne fosse lá com você, já que ela iria passar lá na sua rua e você estava
nos evitando. E vocês pareciam ter se dado bem.
- Nos demos bem...
Cara, eu não resisti e a beijei. Nós nos beijamos. Várias vezes. Ela disse que
já tinha desconfiado que eu estava fim dela e...
- Você está falando
sério?
- Estou, cara. Estou.
Mas, Luso, eu não sei como isso aconteceu, cara...
Fui atingido por um
murro pesado e congelante no rosto. Caí no chão frio da calçada, com a cabeça
inteira dolorida e sentindo um inchaço próximo ao meu olho. Uma mulher que
passeava com um cachorrinho nos olhou desconfiada e voltou a andar. Luso,
bravo, me estendeu as mãos e me levantou. Furioso, admitiu:
- Kauanne disse que
ela o beijou e você foi pego de surpresa. Eu só queria saber se você iria me
contar, mas não esperava que a versão fosse diferente.
- Luso...
- Mas ela terminou
porque, de fato, ainda prefere o ex-namorado. Pensou que fosse conseguir
esquecê-lo estando comigo, mas depois do que vocês fizeram... Preferiu acabar
de vez com o namoro.
- Luso, vou entender
se você não quiser mais nem olhar na minha cara. Eu fui um covarde, sacana,
traidor...
Impaciente, cruzou os
braços e, aborrecido, disse:
- Você é realmente
tudo isso, Plínio. Tô puto da vida com você. Mas... Vou te perdoar. – com um
sorriso tímido, admitiu: - Sou meio idiota quando se trata de garotas, e sou
muito mais idiota quando se trata de amigos. Eu deixo passar dessa vez. Mas só
dessa vez. Porque você foi honesto comigo e porque eu também acho que, depois de
chorar um bocado e pensar bastante sobre esse namoro, acho que me empolguei. –
e estendeu minha mão, puxando-me para um abraço.
- Mas ainda tem uma
coisa, Plínio.
- O quê?
Luso me soltou e eu
ganhei outro soco. A dor foi maior e eu pude sentir uma gota de sangue caindo
no chão da calçada.
- Você sabe que
mereceu, não sabe? – inquiriu, verificando o machucado.
- Sei. Aí! – gritei.
- Vamos entrar na
minha casa pra eu dar um jeito nesse seu rosto feio. – e me acompanhou até a
porta, segurando-me no ombro. – Agora... Pode dizer... - tentando conter o riso
- A Kauanne beija bem pra caramba, não é? - querendo rir.
Espantei-me com a
pergunta de Luso, mas nossa amizade permitia essas intimidades e comprovava que
ele não levou tão a sério. Ele era um namorador. A fossa causada pelo término
sarou sem tantas feridas.
- Beija. Beija bem
caramba, cara. Mas... Pra você me perguntar isso...
Nós entramos na casa
dele, que logo recebeu pingos de sangue, e Luso, cinicamente, perguntou:
- Você lembra da
Susan? Aquela garota que você era apaixonado, mas nunca teve coragem pra se
declarar?
- Lembro. Por quê?
Luso não conseguiu
responder. Ele simplesmente ria, ria descontroladamente.
-
Então... Acho que agora estamos quites. Porque... A Susan e eu... Nós ficamos
uma vez, mas preferi não te contar. – e riu ainda mais. Uma risada alta e
depravada. Meu amigo não era nenhum santo. Eu também não. E Kauanne...
Kauanne... Eu ainda sentia os lábios dela nos meus. Pena que ela era
ex-namorada do meu melhor amigo... Mas ex... É ex. E ela ainda gostava do
ex-namorado dela. Eu teria que procurar alguém que não tivesse ninguém. Mas não
seria fácil. Era só eu fechar os olhos que vinha Kauanne... Isso que dá: gostar
da namorada do melhor amigo.
Comentários
Na verdade, esse pode ser considerado o melhor.
Gostei bastante dos personagens, a linha narrativa é coesa objetiva...
As músicas cairam como uma luva com o tema hehehe - não podia ser diferente.
Esse tema já foi mt cantado na cultura popular, pois é algo exatamente assim: popular.
Inclusive é algo que quase fiz na época de ensino médio, mas definitivamente não faria hoje em dia.
Nem preciso falar da sua escrita, que se aperfeiçoou de tal forma que dá gosto de ler.
Sem pedantismos ou vícios de escrita (ex: debalde heheehe).
Parabéns, Victor.
Abração, desculpa minha ausência.
Da gosto de ler. Vc começa e não quer mais parar. Sensacional mesmo
Mais uma vez vc me prendeu na história como nunca!!!!
Me vi la!!!!
vlw Victor por mais essa!!!!
Quero mais!!!!!abração!!!!!
E esse tal alguém não ser seu..."