Conto: O Outro Pai
O OUTRO PAI
Sorri quando nada terminar
O bebê piscou os olhinhos profundos mais uma vez e se acalmou. O rostinho redondo e branco como a nuvem de um dia ensolarado levava a atenção de Helder embora e trazia para ele as lembranças mais suaves. Mas Guilherme tinha que descansar. Foi preciso que Helder cantasse só mais um pouco para ele adormecer de vez.
Sorrir quando o sol perder a luz
Helder percebeu que Gui tinha, enfim, dormido. E que ele não mais acordaria mesmo que fosse colocado no berço. Mas para se certificar, encerrou a canção.
Sorri mentindo a tua dor
A quentura
no corpo frágil de Gui afrontava Ciane. O termômetro marcava 39. A febre se
instalava no pequenino, e o choro sofrido ecoava em sua modesta casa. Os 11
meses de vida carregavam uma história bordada por laços meticulosos e
pungentes. Ciane o amava mais que a si, porém só o amor dela não era o
suficiente para cuidar do filho. Ela ainda estudava quando engravidou. Com 20
anos, ainda estava na metade do curso de fisioterapia, mas não aceitou abortar
o filho que já repousava em seu ventre. Essa ideia foi de Edson, seu namorado e
pai da criança. Tiveram uma das mais impetuosas discussões, contudo desistiu do
aborto.
O corpo
vigoroso de Edson se enfraqueceu depois da gravidez. A alimentação não era mais
saudável, o rosto perdeu o brilho. A barba, que não deixava crescer, agora o
aparentava ser mais velho do que já era. Ciane, no entanto, não perdeu a cor dos
olhos, nos cabelos ou na vida. Mulher não nasce mãe e não nasce sabendo como é
ser mãe, mas há aquelas que a maternidade floresce na alma. Também há pais e pais.
Edson não estava preparado para ser pai, nem se esforçava. Teve que trabalhar de
garçom no restaurante dos pais para sustentar a nova família, achando tudo um
sacrifício. Seus 25 anos não o faziam um cara maduro, apenas uma pessoa mais
velha, que parou no tempo, estagnou a mente, freou os passos. Mas ele tinha
Helder, seu irmão 4 anos mais novo. Se Edson e Ciane mantinham uma vida
harmônica e relativamente tranquila, Helder era o responsável.
- Você
demorou muito, Edson! – reclamou Ciane, levantando-se do sofá, com o filho no
colo. O choro de Gui arranhava o raciocínio dela e as lágrimas que manchavam o
rosto fofo da criança a doíam. Ainda era bebê, mas era possível ver
que os traços de astúcia, com os lábios de bico carnudo e os olhos raivosos
vieram do pai.
- Tá aqui
o remédio. Tá aqui! – Edson entregou a ela um vidro de remédio que serviria
para Gui tomar em gotas.
- Se ele
não melhorar, vamos ter que levá-lo ao médico! – alertou Ciane, pegando a
sacola e a colocando em cima da mesa.
- Odeio
ter meu pai como chefe! – rezingou, tirando a camisa e indo para a cozinha. –
Só me liberou do restaurante porque Gui tá doente. – e colocou sua carteira em
cima da mesa.
- Mas o
seu Sandro tem sido tão paciente com você e... – discordava Ciane, tirando o
remédio de gotas da sacola. Aconteceu o que ela temia. – Edson, cadê a pomada?
- Pomada?
– perguntou e se lembrou. O esquecimento de Edson estava na perplexidade no seu
rosto. Ciane se descompensou:
- Edson,
caramba! Eu disse pra você não esquecer da pomada! – Gui berrou com o grito da
mãe. – A nossa sorte é que o teu irmão tá vindo aqui. – contou, já esperando
que Edson retrucasse com reprovação.
- O quê?
Você chamou o Helder?!
- Chamei.
Eu sabia que você ia esquecer de algum remédio. Eu pensei até que você não viesse.
- Mas eu
vim. Eu vim. – Edosn voltou para a sala e pôs a camisa novamente. – Eu sou o
pai dele, e não o Helder, Ciane!
- É fácil
falar que é pai, Edson! Pena que nem sempre você lembra disso! – gritou Ciane.
O som do berro de Guilherme era mais forte que a gritaria dos pais. A discussão
parecia abafar o desespero do garotinho.
- O que
você quer dizer com isso, hein? Quer dizer que eu não cuido do nosso filho? -
inquiriu, visivelmente ofendido.
- Ah,
Edson, não se faça de besta. Quantas vezes você já me deixou sem ter o que
comer com ele aqui? Quantas vezes você chegou bêbado enquanto Gui ardia de
febre?
-
Pouquíssimas vezes, Ciane! Eu sou um ótimo pai pro Gui! - respondeu, com
veemência. Para Ciane, foi um tremendo cara de pau.
- Você é
um cínico! Nem queria que ele nascesse!
Edson não
teve como revidar. Ele não suportava quando Ciane lembrava disso. Se ele
pudesse, esqueceria que a pediu para abordar o bebê. Para ele, ficou no
passado; para ela, é vivo no presente.
- Eu nem
lembro mais disso, Ciane. Você também poderia fazer o mesmo. – sugando a calma
do oxigênio.
- Pra
você é fácil. Eu sou a mãe dele e nunca vou esquecer. – revidou. A porta se
abriu e Helder entrou. A camisa polo e o cabelo arrumado lembrou Ciane que ele
poderia ter vindo da universidade. Estava quase no fim do curso de Direito,
atarefado com monografia e com um estágio, ainda tinha tempo para ajudá-la com
Guilherme. Era a função por ser tio e padrinho que ele se pôs e tinha o maior
prazer em cuidar do garoto. Por ser amigo de Ciane, ele foi o primeiro a tomar
conhecimento da gravidez. Saber que iria ser tio e provavelmente o padrinho foi
a maior alegria. No entanto, conhecia o irmão e tinha certeza que ele iria
reagir de modo negativo e preparou a cunhada. A relação dos dois irmãos não era
muito amigável. As diferenças de gênios avançavam com o crescimento deles.
Helder, por sua vez, tentava não bater de frente com o irmão. Já Edson se
incomodava com o jeito responsável e determinado dele e implicava com a timidez
e, acima de tudo, pouco namorador. Com o nascimento de Gui, o clima não
favoreceu.
Ter um
filho era um dos sonhos de Helder e a vinda do sobrinho faria do seu sonho
quase realizado. Mas constituir uma família ainda não era o objetivo de vida.
Portanto, ira amar o filho de seu irmão como se fosse seu, já amava assim que
ficou sabendo da gravidez. O salário de estagiário não era o dos melhores,
porém prometeu a Edson que o ajudaria nas despesas de Gui. Apenas assim ele se
tranquilizou e desistiu da ideia do aborto. “Mesmo que você não assumisse a
criança, eu daria um jeito de ajudar Ciane”, garantiu Helder, que para Edson
foi uma provocação. A partir daí, os três se viam com mais frequência e Helder
passava o máximo de tempo que podia na casa do irmão. E isso trazia imbróglios
na relação da família.
Percebendo
que Helder entrou sem bater, Edson perguntou:
- Você
tem a chave de casa?
- Tenho.
Você me deu, não lembra? – Helder deixou uma sacola na mesa, foi até o sobrinho
e o pegou no colo. Edson teve que dar uma cópia da chave por insistência de
Ciane, pois ela ameaçou delegá-lo ao seu pai sobre suas bebedeiras. – Meu
filho, que choro todo é esse? – inquiriu Helder ao sobrinho,
carinhosamente.
Edson,
irritado, criticou o irmão:
- Ele não
é seu filho, Helder.
- Mas é
como se fosse. – retrucou, andando em círculos e fazendo carinho na cabeça
molhada de suor e quase careca de Gui, que já diminuía o choro. – Vocês já
deram algum remédio pro Gui? Ele pode piorar!
- Não.
Edson esqueceu a pomada e a gente estava te esperando. – disse Ciane.
- E por
que não deram o remédio de gotas? – impaciente, Helder tirou o remédio de gotas
da sacola, com Gui no colo e pediu para a cunhada colocar numa colher pequena.
– Edson, não deixe mais isso acontecer com Gui. Se ele não melhorar, vamos ter
que levá-lo à emergência.
- Você
vai querer me ensinar a cuidar do meu filho? - Edson, irritado.
- Não é
isso, Edson. É que... – Helder parou de falar e posicionou o sobrinho para que
Ciane desse o remédio a ele. O bebê voltou a chorar, e Helder cantarolava para
ele se acalmar. – Gui é como um filho pra mim, por isso eu me preocupo com ele.
- Acho
que já tá na hora de você ter seu próprio filho, não é, Helder? - provocou
Edson.
Ciane o
esganou com o olhar e Helder nem se atreveu a responder. Edson, que estava
aturdido de fúria, não se calou:
- Só que
pra você ter seu próprio filho você teria que transar com uma mulher. E mulher
não é realmente seu forte. – ironizou Edson. Ainda mais irritada, como se
tivesse sido ofendida também, Ciane não prendeu suas mãos e o esbofeteou. O
tapa soou forte e se podia ver o avermelhado no rosto de Edson. Olhou a esposa
com nojo, foi até a cozinha, colocou sua carteira de volta no bolso e disse
para Ciane:
- Você já
tem quem cuide de vocês hoje. E não se preocupem, vocês não vão sentir a minha
falta. – e saiu, batendo a porta. Ciane se sentou no sofá aos prantos. Gui, por
milagre, adormeceu. Helder sentou ao lado dela e agradeceu:
-
Obrigado por me defender, Ciane.
- Ele
deveria te respeitar. Não sei como você aguenta. - com a voz fraca para não
acordar o filho.
- Nem eu
sei. Agora vá atrás do Edson.
- Não
vou. Ele...
- Vá,
Ciane. – mandou Helder. – Ele é o pai do Guilherme. E do jeito que ele tá com
raiva, vai acabar indo pra um bar e você vai se estressar.
Ciane
concordou, beijou o filho na testa e agradeceu, emocionada:
-
Obrigada, cunhado. Gui tem sorte de ter você como padrinho.
O
agradecimento de Helder foi com um sorriso.
- Você
sim é o pai dele. - Helder agradeceu com outro sorriso. - Volto logo.
Helder
ficou sozinho com Gui. Não era a primeira vez que os pais dele saiam e ele se
responsabilizava pelo sobrinho, mas era a primeira vez que os pais brigavam,
saíam de casa e tinha que cuidar do garoto. Gui acordou e piscou os miúdos olhos
repetidas vezes. “Oi, garoto!”, cumprimentou Helder, todo bobo. Quando não se
sabe ou não se pode falar, se sorri, e foi assim que o bebê o recebeu ao
acordar: sorrindo. Esperto, o sobrinho levantou a sua mãozinha e Helder levou
seu dedo polegar até ela. A miúda mão de Gui agarrou o dedo adulto do padrinho,
com força e não o soltou. O padrinho se derretia como manteiga quando Gui
sorria para ele e mais ainda quando ele segurava seu dedo; era como se soubesse
que o tio sempre estava e sempre estaria ali para colocá-lo no colo quando
fosse e quando não fosse necessário.
O sorriso
infantil e banguela de Gui lembrou a Helder uma canção antiga e bonita, a
versão brasileira "Smile". O bebê gostava e adormecia quando o tio
cantava para ele, ainda que a voz não fosse afinada. A canção tinha uma
mensagem reflexiva. Helder se levantou do sofá e iniciou a canção, calmamente,
para que o afilhado descansasse.
Sorri
quando a dor te torturar
E a
saudade atormentar
Gui não
parecia ter sono. Soltou o dedo de Helder e gargalhou para ele, que devolveu
com outra risada. Por ele, o sobrinho poderia rir o dia todo e seria um dia
perfeito. Porém, preferiu voltar a cantar para ele dormir.
Sorri quando nada terminar
Quando
nada mais restar
Do teu
sonho encantador
O bebê piscou os olhinhos profundos mais uma vez e se acalmou. O rostinho redondo e branco como a nuvem de um dia ensolarado levava a atenção de Helder embora e trazia para ele as lembranças mais suaves. Mas Guilherme tinha que descansar. Foi preciso que Helder cantasse só mais um pouco para ele adormecer de vez.
Sorrir quando o sol perder a luz
E
sentires uma luz
Nos teus
ombros cansados, doridos.
Helder percebeu que Gui tinha, enfim, dormido. E que ele não mais acordaria mesmo que fosse colocado no berço. Mas para se certificar, encerrou a canção.
Sorri mentindo a tua dor
E ao
notar que tu sorris
Todo
mundo irá supor
Que és...
O
cantarolar de Helder foi interrompido pelo toque do celular. A única preocupação
era que Gui acordasse, mas nem se moveu. Para se equilibrar melhor, se sentou
no sofá e atendeu ao telefonema de número desconhecido. Uma voz grave o
atendeu:
- Boa
noite, senhor. Eu falo com Helder Martins?
- Sim.
Quem tá falando? – perguntou, preocupado. O bebezinho em seu colo não dava
indícios de que iria acordar.
- Senhor,
eu sou o policial Maciel. – informou. Para receber ligação de um policial,
Helder pensou imediatamente em Edson e Ciane. – Estamos com uma ambulância,
aqui próximo à Rua dos Andantes. – era a rua onde estava, em que o irmão e a
cunhada moravam. Helder ouvia o policial com os olhos fixos em Gui, que dormia
silenciosamente. – O senhor é irmão de Edson Martins, correto?
-
Correto. O que houve? Diga logo.
- Ele a
esposa foram atropelados por um caminhão, senhor. O motorista não parou para
socorrê-los. Morreram na hora. Mas... - Edson não ouviu mais nada que o
policial dizia. Era como se tivessem apertado no "Mudo" ou tivessem
sequestrado todos os seus sentidos.
- Senhor?
Senhor? Senhor Helder? - repetia o policial. - O senhor está me ouvindo?
-
Desculpe... O que o senhor falou? Meu irmão e minha cunhada...?
- Sinto
muito, senhor. Mas há câmeras de seguranças por aqui e serão verificadas.
Precisamos de alguém da família aqui conosco. O senhor pode vir?
Helder
não sabia o que responder. Ouviu cada palavra do policial, mas só absorveu o
início. Só deu importância para a primeira frase: Edson e Ciane estavam mortos.
Mortos. Eles não poderiam morrer. Não com um bebê de quase um ano de idade para
criar. Eles eram os pais dele. Não podiam morrer. Não podiam!
- Senhor?
– chamou o policial.
- Ah, me
desculpe. Eu... Eu não posso deixar o meu sobrinho aqui. Então, ligue para o
nosso pai, Sandro, ou para... Para... Uma tia nossa, vou lhe dizer o número
deles, mas... Deve... Deve ter na agenda dos dois.
Depois de
lembrar e informar os dois números, Helder já ia desligar, mas lhe veio uma
pergunta:
-
Policial?
- Sim?
- Por que
o senhor ligou primeiro para mim e não para os meus tios?
- Porque
o seu número está no "Favoritos" dos dois e na lista de chamados de
ambos o seu número também se repete muito.
- Ok.
Obrigado. – e desligou. Helder era o socorro. Apesar das implicâncias do irmão,
Helder era a emergência de Edson, para quem ele corria quando precisava.
Helder
deixou cair uma lágrima nos poucos cabelos pretos e finos de Gui. Ele deveria
deixar o sobrinho com uma vizinha, que já os conhecia, e ir ao encontro dos
policiais. Não poderia acreditar que seu irmão e sua cunhada estavam mortos.
Além do sofrimento de perdê-los, o que mais lhe atormentava era o futuro de
Gui. O que seria dele sem os pais? Os pais de Helder cuidavam do restaurante e
não teriam tempo para o neto. E ele? E Helder? Ele poderia auxiliar na criação
do afilhado. Mas e se, no futuro, Gui se revoltasse e não aceitasse o tio como
ele realmente era? E se o culpasse pela morte dos pais, como ele mesmo se culpava?
Havia muito a pensar, a decidir. Helder estava atônito.
Até que a
última frase de Ciane soou alto ali na sala.
“Gui tem
sorte de ter você como padrinho... Você sim é o pai dele".
Com o
coração apertado e ensanguentado de amor, olhou para o sobrinho adormecido,
decidido do que faria e, permitindo que a lágrima caísse de novo, assegurou:
- Você
não vai ficar sozinho, Gui. Não vai. Não vai, filho.
E Gui
acordou. Sorrindo.
Comentários
Me encheste os olhos de lágrimas, isso já diz tudo.
Este é seu conto mais lindo e mais emocionante.
Obrigado por escrever algo assim.