Conto: Uma noite sem chuva
revisão textual
Mônica Satiro
(licenciatura em Letras Língua Portuguesa - UFPA)
Uns três
quarteirões distanciavam a casa de Alcemir do supermercado Fissura. Quando
sobrava um tempo, geralmente à noite, tirava uma hora para uma cansativa
caminhada na Praça do Sol, quase ao lado do Fissura, na Rua dos Valores. A meta
era expulsar as gorduras localizadas de cada membro de seu corpo roliço, dos
seus braços pesados, pernas com estrias, uma bunda espaçosa e seu rosto de bola
de futebol. Havia uma noite na semana reservada para fazer compras, mas aquela
quinta-feira noturna não listava muitas necessidades. O armário e a geladeira
até que estavam fartos. O maior tormento era se acomodar em casa, sentir-se
como um travesseiro em sua cama por ficar tanto tempo nela. Comprar gordices no
supermercado o faria menos solitário. Era, além disso, uma noite sem chuva e
sem alagamentos, perfeita para dar uma volta.
A Rua dos
Valores carregava as pessoas de um lado para o outro. Jovens conversavam entre
si com as mãos presas nas mochilas ou nas bolsas, como se seus pertences
pudessem fugir sozinhos; suas pernas pisavam num ritmo de correria e alguns
jovens com um humor oscilante. Os motoristas de carro ou de moto atropelavam
sua própria pressa. Alcemir tinha receio de perambular pelas calçadas, não por
medo de ser atropelado, mas porque os olhares de soslaio o vestiam como um
criminoso. A sociedade não recebia os negros com bons olhos, e se for negro e gordo
a indolência era maior. O sorriso de Alcemir se acanhava quando encarava o
temor nas expressões alheias. Mas já estava acostumado.
O
carrinho de compras de Alcemir mesclava nas cores, nas vitaminas, doces e
carboidratos. Os pacotes de biscoitos recheados se debatiam com as sacolas de
banana, maçã e melão. As latas de salsichas se perdiam com as gramas de queijo,
presunto, peito de peru e salame empacotados, com os mais variados pães e um
refrigerante de dois litros. Com o pouco dinheiro que tinha, Alcemir foi
descartando alguns produtos até chegar ao caixa, porém os lanches e duas barras
de chocolate permaneceram. Com três sacolas para carregar, o jovem se sentou no
banco de madeira que ficava na saída do supermercado e, esfomeado, tirou um
salgado que comprou na padaria do Fissura e o abocanhou. Um senhor de cabelos
brancos tentou sentar ao lado dele, mas desistiu. O espaço que sobrou não era
suficiente.
Eram dois
lanches, no entanto comeria o outro somente quando chegasse em casa. A sacola
com o refrigerante de dois litros deveria ser a mais pesada, porém os braços de
Alcemir aguentavam. Sua camisa larga sofria com suor do corpo e o cansaço já o
amolecia, mas ele não se importaria em refrescar seus olhos com o bucolismo da
Praça do Sol enquanto terminava seu lanche. Sentado em um banco numa área
soturna da praça, depois de alguns rapazes descamisados e moças saradas
passarem correndo na frente dele, Alcemir deu mais uma mordida no seu salgado.
Um suco o serviria bem, mas ele não queria levantar do banco. Enquanto as
pessoas caminhavam para manter o corpo em forma, as gorduras de Alcemir se
mantinham firmes. Ele não mais se incomodava com seu corpo gorducho. O último
namoro teve fim devido ao desleixo dele com sua saúde, saiu da casa de sua mãe
justamente por causa desse namoro e sentia que os poucos familiares com os
quais mantinham contato não se interessavam em vê-lo. Alcemir era feliz do
jeito que era. Ou fingia ser. Quando se vive sozinho, ninguém é feliz por
completo.
O salgado
alcançou a última mordida. Ainda havia outro. Comprou um suco do vendedor de
hot dog que passava ao seu lado e se preparava para abocanhar o lanche.
- Ei,
tio! Ei, tio! – uma mão cutucava amiúde no ombro de Alcemir. Uma garota estava
ao seu lado, com um vestido esfarrapado e um cabelo que parecia ter levado um
choque, mas com a cabeleira pra baixo, assustando-o com um cheiro desagradável
de quem não havia tomava banho o dia todo. Aquela não era a primeira vez que
Alcemir era abordado por um estranho, e sempre que isso ocorria alguns de seus
pertences eram levados embora. A última vez que foi vítima de um assalto teve
que entregar seu celular – comprado havia seis meses – a uma jovem de um dezessete
anos. A faca na mão dela afiou a intimidação. “Vamos, gorducho! Passa logo o
celular!”, mandava o rapaz.
- Tô sem
meu celular. – respondeu Alcemir, apavorado, evitando olhá-la. Com o salgado
nas mãos e as sacolas ao seu lado, no banco da Praça do Sol, ele não conseguia
se levantar. O pânico por ser assaltado mais uma vez – talvez a terceira – o
impedia de se mover. A reação foi se manter sentado, com a esperança de que a
garota desistisse e fosse embora. Ela não teria coragem de nenhuma atitude
criminosa com tanta gente ao redo.
- Não,
tio. Eu tô com fome. – a garota o tocava no ombro mais uma vez. E só então,
olhando-a dos descalços e imundos pés à cabeça de cabelos emaranhados, Alcemir
notou o vestido velho dela: longo e amarrotado, sem cor, sem vida. Nada nela o
ameaçava. Ela não tinha como feri-lo.
Os passos
das mulheres que caminhavam na praça freavam. Elas queriam saber qual a atitude
de Alcemir. Um casal de amigos que andava de patins também freava pelo motivo
similar. E o rapaz comilão, ainda sem forças para se levantar do banco, com a
consciência de que estava arriscando a vida, olhou para a garota e a estendeu o
salgado. Sem nenhuma polidez, ela tomou da mão dele. Alcemir esperou que a
menina saísse correndo, porém se surpreendeu quando ela se sentou na ponta do
banco.
-
Obrigado, tio. – de boca cheia, a menina agradeceu. Uma mordida que levou quase
todo o salgado. Ela deveria estar sem comer nada há horas. Ou há dias. E para
dar mais espaço para ela se sentar, Alcemir trouxe uma das sacolas para o seu
colo. Até que uma ideia estranha aterrissou na sua cabeça.
Todas as
sacolas estavam penduradas no braço de Alcemir quando ele foi à barraca de água
de coco a alguns passos apenas. O vendedor estava servindo um copo de suco de
goiaba para uma moça, mas teve de entregar para o rapaz apressado. Alcemir o
pagou, deixando cair algumas moedas na grama. A menina recebeu o copo de suco
quando estava quase no fim do lanche. Engolindo-o com dificuldade, ela
agradeceu mais uma vez.
Alcemir
se sentou de novo, com duas sacolas no colo e uma no banco. Ele pôde ficar mais
perto da menina esfomeada. O odor também, agredindo seu olfato. Tentando se
sentir mais seguro na companhia dela, perguntou:
- Há
quanto tempo você não come?
- Desde
ontem. – respondeu, abocanhando o que restava do salgado.
- Desde
ontem? Como você consegue ficar tanto tempo sem comer? – a incredulidade de
Alcemir era, quem sabe, maior que a fome da menina.
- Ah, nem
foi tanto tempo não. Tem vez que eu fico três, quatro dia sem comer. – ela contou, como
uma naturalidade que espantou Alcemir. A garota tomou o suco quase que num gole
e arrotou. Uma velhinha que andava por perto a olhou com repugnância. –
Desculpa aí, tio. É que o lanche tava muito bom.
- Tava...
– Alcemir, penalizado com a situação da garota, tirou uma barra de chocolate
que havia comprado no Fissura e a entregou. Ela revezava os olhares de espanto
entre o doce e o rapaz.
- Esse
chocolate é pra mim?
- Pegue
logo, antes que eu coma. – Alcemir ameaçou. A garota não hesitou. E a metade da
barra de chocolate foi devorada.
- E eu
pensei que o senhor fosse que nem esses cara metido à besta
por aí. – espantou-se a menina. Alcemir perguntou o que ela estava
querendo dizer. – Eu já vi o senhor por aqui pela rua, já pedi comida pro
senhor. Mas o senhor anda sempre tão apressado, não olha pros lado, tá
sempre com cara fechada...
Foi como
levar uma rasteira de si. Alcemir jamais pensou que seria comparado a um tipo
de pessoa que ele criticava. Mudando propositalmente de assunto, inquiriu:
- Qual o
seu nome?
- Marta.
– respondeu, depois que deu a última mordida no chocolate. A embalagem foi para
o bolso da garota. Antes que Alcemir pudesse perguntar o porquê de a menina
guardar a embalagem, ela fez a mesma pergunta a ele.
-
Alcemir. Meu nome é Alcemir.
-
Alcemir... – repetiu Marta, coçando a cabeça.
- Você
mora com quem, Marta?
- Às
vez, com o meu pai. – Marta respondeu roendo as unhas sujas.
- Como
assim “às vezes”?
-
Porque nem sempre ele aparece em casa. – ela, de novo, falava com a maior
tranquilidade.
- E o
senhor? Mora com a seus pais?
- Não.
– respondeu, lembrando que teve que sair da casa de sua mãe porque
ela não o queria mais lá.
- Mora
com a sua namorada? – perguntou, com um jeitinho assanhado.
- Não...
- Mas o
senhor tem namorada?
- Não...
- E por
que o senhor não tem namorada?
-
Porque... – Alcemir não sabia se mentia ou seria franco. Fingir ser outra
pessoa para uma desconhecida curiosa não fazia sentido. – Bem, eu tive um
namorado. Mas ele me abandonou.
- Por que
ele fez isso? – a menina estava interessada em ouvi-lo. Fazia tempos que alguém
não se dispunha a escutar as asneiras de Alcemir. – Ele é doido, é?
- Acho
que sim... Você não acha estranho eu ter um namorado?
- Acho
estranho ele ter largado o senhor. – devolveu Marta, cruzando os braços. – Oh,
ainda não larguei a escola. Quando não peço comida nas rua, eu vou pra escola.
- Deveria
ir sempre. – retorquiu Alcemir. Marta quis voltar ao assunto anterior.
- E por
que seu namorado abandonou o senhor?!
Alcemir
ainda não acreditava que pela primeira vez em muito tempo alguém não o julgava
por ser gay, nem gordo ou preto. Ficou mais à vontade para responder à Marta,
porque a sua própria mãe não conseguiria viver na mesma casa com pessoas
“daquele jeito”.
- Quando
nós brigamos, ele... Ele disse que eu estava gordo demais. E ele me conheceu
assim. – reiterou.
- E o que
é que tem se o senhor é gordo?! Ele queria namorar alguém assim – Marta pegou
na própria barriga esquelética – só osso que nem eu?
- Não “só
osso”... – Alcemir riu com uma fungada.
- Como
assim?
Sendo
direto, Alcemir respondeu:
- Ele tá
com um cara bem mais magro, musculoso e mais branquelo que você. – com uma
pontada nas lembranças, ele completou: - Com um cara mais bonito que eu.
- Ah, -
meio envergonhada, Marta disse: - ele pode até ser mais bonito, mas o senhor
deve ser mais legal que esse novo namorado.
A risada
foi mais alta que Alcemir. Ele não queria se conter. Riu com vontade. Era uma
conversa como aquela que estava faltando para ele. Alguém como uma garotinha de
rua para ouvi-lo e diverti-lo. Marta exibia seus dentes amarelos, formando um
sorriso sincero. Mas o diálogo dos dois teve de ser interrompido. O trovão
anunciou que se Alcemir não se apressasse, pegaria chuva e não conseguiria
entrar na sua casa. A Rua dos Valores alagava em poucos pingos.
Ele se
levantou e se despediu da garota.
- Tenho
de ir agora, Marta. Antes que eu me molhe todo.
- É
verdade, tio. Vai, senão o senhor vai ter que nadar pra entrar
na sua casa.
- Em
frente a minha casa alaga mesmo... – desconfiado, ele perguntou: - Como você
sabe?
Coçando a
cabeça que deveria estar contaminada de piolhos, a menina sequela respondeu:
- Eu
passo mais tempo na rua do que na minha casa, tio. Vejo mais as moças que
caminham na praça e os vendedores de água de coco do que com meu pai. Sei até
onde um deles mora.
Marta
contava como se fosse um segredo. A vida dela era nas ruas. A sua casa eram as
ruas. Ela vivia cercada de gente, mas solta num vazio. Dependia da sua própria
companhia para se aquecer e da piedade dos outros para sobreviver. A única arma
de Marta era a fome, a sua única defesa era a sua boca. Seus olhos famintos de
vida. Alcemir se viu pequeno perto dela, mas não sabia se isso era o certo. Os
dois eram iguais sendo tão diferentes. Sentir pena dela era sentir pena de si.
E ninguém merecia o sentimento de pena.
- Agora
eu já vou. – disse Alcemir.
- Valeu,
tio. – como agradecimento, Marta, que já não estava tão fedorenta assim, o
abraçou calorosamente. – Tchau, tio. Até outro dia! – e a menina saiu andando.
Deixou Alcemir e a Praça do Sol na escuridão.
Um pingo
de chuva alcançou o ombro de Alcemir. O próximo pingo o socou no ombro. Ele
teve de se apressar para não ser pego pela chuva. Foi uma das vezes que ele
mais teve raiva por estar chovendo. Se não fosse por isso, teria ficado na
Praça do Sol e conversado por mais tempo com Marta. A garotinha não tinha um
cheiro muito bom, mas e daí? O melhor perfume está nos melhores abraços. E ela
foi a primeira pessoa, em muitos meses, que não reclamava de sua gordura quando
o abraçava. Porque só o que ele queria em troca era um abraço.
***
Mais uma
manhã vazia. Uma mesa arrumada somente para um. Uma xícara e um pires. Acordar,
tomar café sozinho era como separar o pires da xícara, o leite do café. Porém,
Alcemir já estava acostumado. Dormiu confortavelmente em sua casa, irritado com
a chuva que cessou minutos depois que ele entrou em casa, na noite anterior. O
alagamento secou rápido. Depois do banho, ele só queria dormir. Ficar acordado,
tendo como companhia somente do travesseiro e da cama não merecia a disposição
de Alcemir.
A xícara
receberia a quentura do leite quando Alcemir decidiu mudar o início de seu dia:
iria tomar café na sala. Com a xícara em uma mão e um pão com queijo e presunto
na outra, ele entrou na sala, mas parou no meio do caminho ao perceber um
pedaço de papel dobrado na direção da porta. Deixou o café da manhã na mesa da
sala e se abaixou para pegar o papel, mal percebendo que a claridade do dia lá
fora não invadia sua casa pela fresta da porta. Na verdade, eram dois papéis
dobrados. Em um deles, um papel de caderno rasgado e sujo, uns garranchos em
letra de forma diziam numa linha torta: “OI TIO”. O outro papel não era bem um
papel. Era a embalagem rasgada de um chocolate.
Sorridente,
Alcemir pôs os dois papéis em cima da mesa e foi até a porta. O cheiro não
estava mais desagradável. Uma boa companhia era o melhor perfume para um frasco
vazio. E mais um pires e uma xícara foram postos à mesa.
Comentários
Amei. Adorei. Incrível. Supimpa.
Eta menino bom pra escrever.
Quero ler o resto dessa amizade. E PF não demora a contar. Bj
Um conto que merece muito ser publicado, lido e aplaudido.
Parabéns pela grande produção, excelente mesmo.
Amei cada um dos personagens. Marta é, sem dúvida, seu personagem mais encantador.
Obrigado por escrever o texto mais singelo e lindo que li hoje!
Quero muito entrar em contato com você para falar a respeito do seu texto sobre a biografia de Milton Nascimento.
Se tiver a oportunidade de ler isso, por favor, me mande um e-mail.
laiane.guiomar@hotmail.com
Obrigada,
Att, Laiane.