Conto: A menina tagarela
A tarde
toda, João Carlos, o J.C, ouviu os lamentos do primo Fagner. Desabafou por
horas. Mas apesar do dia ruim, Fagner conheceu uma menina no ônibus que o
alegrou o dia. Agora, quase sete da noite, J.C se despediu do primo e se
apressou no banho. Os pais dele iriam para o Círio Musical com outros
familiares, mas ele não ficaria sozinho. Mirian, a atual ficante-quase
namorada, desfrutaria dos beijos e do corpo todo de J.C naquela noite. Era a
intenção deles.
-
Filho... – a mãe de J.C bateu à porta do quarto e entrou. – Você está arrumado
e cheiroso demais para quem vai ficar em casa. – comentou, sem esperar resposta
– Ah, a Lourdes vai deixar a Fabi aqui com você, viu?
- Comigo?
Ham? – perguntou J.C, freando o penteado nos cabelos rebeldes.
- Ela e o
Mauro vão sair comigo e com o seu pai, não têm com quem a Fabi ficar. Eles
perguntaram se poderiam deixar com você, eu disse que sim. – e sorriu, fechando
a porta. J.C riu de nervoso. Correu até a mãe e perguntou se era uma brincadeira
de mau gosto. – Desculpa, filho. Eu não sabia que você estava esperando a
Mirian... Espera. – a mãe se virou como se tivesse realizado a maior descoberta
da vida – Você pretendia ficar sozinho com a Mirian? Ainda bem que a Fabi vem
pra cá! E você tá com sorte de não ficar de castigo!
J.C, com
sua ingênua maioridade, seria babá por uma noite de uma sobrinha de cinco anos.
Mal humorado, se jogou na cama, depois vestiu uma roupa qualquer. J.C gostava
de crianças. Por uns cinco minutos. Apertava as bochechas, carregava no colo e
pronto. Já foi. Era filho único por isso. Crianças choram, gritam, fazem coco e
deixam a fralda um estrago. Também não tinha paciência para crianças mais
velhas. Falam demais, gritam pela casa, destroem tudo... Gostava de ir às
festas infantis. Comida e doces fartos. Fora isso, uma gangue de pirralhos
correndo pra lá e pra cá o estressava, embora ele não convivesse com criança
alguma - era essa visão que ele tinha de uma. J.C teria que cuidar de Fabi, uma
menina de 5 anos, filha de sua prima, que só se veem em raras ocasiões, como
naquela semana do Círio. Os pais e primos do rapaz iriam para o Círio Musical
enquanto ele ficaria de babá de uma sobrinha que mal conhecia. Ele não tinha
convívio com nenhum dos seus sobrinhos. De tantos que eram formariam uma
creche.
A cara
amarrada de J.C não ocultava a infelicidade ao abrir a porta para os primos.
Mauro carregava uma bolsa roxa, com uma figura de um tigre, Lourdes segurava
uma sacola que aparentava estar cheia de bugigangas. No meio deles, uma
miniatura de gente. Uma garotinha de cabelos crespos e amarrados, de cor única,
vestia um sorriso aquecedor, que quase amoleceu o coração pedregoso de J.C. Ela
abriu os braços e correu para abraçar o tio. Quase foi derrubado. O perfume de
bebê o trouxe uma nostalgia estranha, que ele nem sabia como podia sentir. Mas
se lembrou de que cuidaria dela a noite toda, logo perdeu o encanto.
- Fabi,
esse é o seu tio J.C. – apresentou-os Lourdes. A garotinha o soltou do abraço
quase asfixiante. O vestidinho branco com coraçõezinhos vermelhos, os cabelos
em círculos e sandália das Meninas Superpoderosas a infantilizou ainda mais.
J.C sentiu novamente o desânimo por ter que tomar conta da priminha de 5 anos.
– Obrigada por ficar com ela, primo! – Lourdes agradeceu. J.C retribuiu com o
sorriso mais falso. Entregou-o as duas sacolas. Em uma havia roupa, suco,
iogurte, um vidro de perfume e um outro vestido – se houvesse necessidade de
usar –; na oura sacola, as bonecas mais estranhas, maquiagens e um celular.
“Meu Deus!”, pensou o rapaz, orando para que terminasse a noite.
- Tio
Xota Cê! Bora brincar?! – Fabi sorria escandalosamente, banguela. Ele já estava
sozinho com ela. A pronúncia do “Jota” saiu mais como um “X”. Ele achou
engraçado, porém bufou com o pedido da garota: - Brinca de boneca comigo?
J.C
carregou a menina até o sofá. Ela riu como se estivesse numa montanha russa.
-
Minha... Sobrinha... - soou estranho dizer "sobrinha", mas
prosseguiu.
- Oi,
tio! – ela pulava sentada. A jenelinha dos dentes como um ioiô.
- Eu, o
seu tio, não sou menina. Não posso brincar de boneca com você.
- Mas não
pode por que não quer ou não pode porque não é menina?
A boca de
J.C se abriu para responder, mas nenhuma palavra foi dita. A sobrinha de 5 anos
o encurralou numa pergunta difícil. Ele brincava de carrinhos e bonecos de
monstros e super-heróis quando criança. Cresceu com esta ideia: brincar com
bonecas e usar rosa eram coisas de menina. Ele não se imaginava brincando de
bonecas.
- Fabi,
por eu ser menino, brincava de carrinhos, nunca de bonecas. Não seria meio
estranho, eu, menino, brincar de bonecas? – tentou uma resposta numa pergunta.
- O
senhor já teve bonecos de heróis quando era criança? – perguntou, com uma voz
meio rouca de menina danada. J.C assentiu, sentindo-se um ancião ao ouvir o
“senhor”. – Então, eram bonecos. É a mesma coisa. Acho que não vai ser
estranho. – ela encolheu os ombros timidamente. Um jeito irresistível. Parecia
gente grande. J.C teve que voltar a ser criança, não tinha muita alternativa.
Fabi pegou algumas bonecas descabeladas e jogou no sofá. A preferida da
sobrinha era de cabelo crespo, como o dela. De pele negra como a dela. J.C
pegou outro boneco da mesma cor e se desprendeu da masculinidade frágil. Deu
voz forçadamente grossa ao boneco e brincaram que defenderiam o mundo das
baratas voadoras. Por alguns minutos, J.C riu como um idiota ao ouvir as frases
icônicas da sobrinha.
- Qual o
nome dele? – J.C perguntou à sobrinha, segurando o boneco. Na maior
simplicidade, Fabi respondeu:
- Godinez.
-
Godinez? Como o personagem do Chaves?
- Sim.
- Ele é o
seu personagem favorito do Chaves?
- Sim.
- Por quê?
– J.C jamais ouviu alguém dizer que o Godinez era o personagem favorito. Ele
não queria admitir que aquela noite não estava mais sendo sacrificante.
- Porque
ele é o mais engraçado. Ele não deixa o professor falar. É o Mestre Linguiça. –
explicou rindo. J.C não resistiu, unindo-se à risada de Fabi.
Cansada
de brincar, Fabi anunciou que estava com fome:
- Pão com
presunto com suco de acerola, ou de uva. Dois pães. – exigiu, lambendo os
beiços. J.C não sabia se preparava os sanduiches ou se ria da sobrinha. Como
uma menina de 5 anos poderia falar tanto? Ser tão esperta? Tão engraçada? E ter
uma pronúncia melhor do que a de muitos adultos?
- Eu tenho
um amigo da escola que gosta de comer leite com banana. Acredita, tio? – Fabi
perguntou, mordendo o último pão.
-
Acredito... – respondeu, ouvindo as lorotas da sobrinha matraca.
- Você
acha que eu tô bonita, tio? – perguntou Fabi, repentinamente, ao terminar o
suco de uva.
- Acho
sim. – respondeu J.C, mastigando um sanduíche.
- Eu
queria usar maquiagem. Mas a mamãe diz que sou muito criança. – disse Fabi,
fazendo beiço.
- Ela tem
razão.
- Ei,
tio! Posso maquiar o senhor?! – Fabi teve a ideia mais absurda. J.C tomou um
longo gole de suco para não se engasgar.
- Não.
Você já quer demais.
Cinco
minutos mais tarde, J.C estava sentado na sua cama, de frente para Fabi. Ela
havia trazido um estojo de maquiagem de crianças na bolsa. A chantagem da
sobrinha foi o suficiente para ele aceitar o convite: um bico tolo, de braços
cruzados, com cara de choro. O tio babá temia se olhar no espelho. Os cabelos
eram puxados de um lado, amarrados de outro, um pó velho nas bochechas e um
batom que não era passado na boca. Enquanto o “maquiava”, Fabi não mantinha a
boca fechada.
- Tio, eu
tenho uns vários amigos pra você conhecer. – comentou, enrolando o cabelo dele
com um pompom. – Tenho um amigo que adora mainicreft, jogos no
computador, joga karatê ou judô, não sei bem qual é, e morre de medo de escuro.
– cochichando e rindo. – Tenho uma amiga que adora dançar balé, e gostava de
fazer vídeos engraçados no youtube, sabia? – contou, como se fosse a coisa mais
interessante. – Também tenho uma amiga que vai ter uma irmã, e a melhor amiga
dela é uma adolescente! – puxando o rosto dele com força para passar batom na
testa. – Tenho um amigo da minha sala. – novamente contou como se fosse uma
notícia impactante. – Aquele que come banana com leite! Ele tem um tableeet! E
vários jogos no cerular dele.
- Cerular,
é? – J.C ouviu, entre tantas frases bem pronunciadas, um “R” no lugar do “L”.
- É. E
ele adora assistir aquele filme esquisito. – com um tom de reprovação.
- Que
filme esquisito?
- Aquele
que tem um robô preto do mal, uma princesa com um penteado engraçado assim. –
apontando para a própria cabeça.
- Ah,
você quer dizer Star Wars?
- Isso! E
ele ainda sabe cantar uma música de um desenho que é toda em ingleeeiiis... Ah,
pode ver. Acabei!
O espelho
do quarto de J.C o revelou algo tão assustador quanto o palhaço do
"IT". Os cabelos pareciam com os da Chiquinha quando o Chaves corta o
cabelo dela, mas sem o corte. Estava torto. O batom vermelho na testa e um pó
roxo na bochecha. Ele engoliu a risada. De imediato, pegou o celular e enviou
fotos do seu novo visual para Fagner e Mirian. Rindo da própria foto, teve que
dar o braço a torcer: ficar de babá da sobrinha estava sendo divertido.
Fabi
pediu para J.C ligar a televisão e por o desenho “Dora, a aventureira” na Netflix.
Ele já estava esperando esse momento. Assistir desenhos infantis seria moleza
para quem brincou de boneca e permitiu uma mutilação em forma de maquiagem no
rosto.
- Você
gostou da minha maquiagem, tio? – perguntou Fabi, enquanto J.C a vestia um
pijama.
- Gostei,
sim. Já posso usar no Hallowen.
- Ham...
Isso foi um elogio? – perguntou, com um jeito estranhamente espantado.
- Foi
sim. – concordou, com uma careta cômica.
- Esse
elogio foi desnecessauro.
- Desnecessauro?
– ele riu ao repetir a palavra. - É sério. Você pode fazer em um amigo meu, se
quiser. Ele gosta de umas maquiagens.
- Seu
amigo? Que suspeito, muito suspeito... – Fabi coçava o queixo, numa pose de
pensadora.
- Por que
suspeito? Se eu brinquei de boneca, qual o problema de ele se maquiar?
Fabi
pensou um pouco, bagunçou os cachos amarrados e perguntou:
– Tio, eu
gostei do senhor, sabia?
- Eu
também gostei de... – ela não o esperou terminar de falar e o abraçou. Receber
um abraço de um amigo ou da namorada não era nada comparado ao de uma criança.
Era puro e o cobria uma fragilidade rara.
- Eu
posso vir outras vezes aqui com o senhor? – com um olhar ansioso.
- Pode...
Acho que pode. – respondeu, com sinceridade. Crianças, afinal, não eram, assim,
tão chatas. Fabi, a sobrinha que praticamente conhecera naquela mesma noite, o
ensinou que crianças poderiam ser divertidas e educadas. Podiam ser mais
francas e carinhosas que qualquer adulto ou adolescente. Fabi assistiu apenas
alguns minutos de “Dora” e adormeceu. J.C a cobriu com um cobertor e
dormiu ao lado dela, com a maquiagem ainda no rosto.
Duas
semanas mais tarde, J.C se viu surpreso ao aceitar que a sobrinha Fabi dormisse
na sua casa numa noite em que Mirian o visitaria. Ele teve dois motivos para
aceitar: realmente gostou da garota e por que Fabi pediu para ir vê-lo. Ao
abrir a porta para recebê-la, levou um baque. Ela não era a única criança.
Havia um garotinho de cabelos meio encaracolados e castanhos, de lábios
ondulados e uma camiseta do Darth Veider.
- Me
desculpa, J.C. – pediu Lourdes, sorrindo sem jeito. – Ela pediu para trazer o
amiguinho.
- Tio,
ele é o meu amigo que te falei. – disse Fabi, depois de abraçar o tio.
- Eu
percebi. – J.C se alarmou com a cara do vilão de Star Wars na camisa do
garotinho. E se abaixou para conversar melhor com os dois.
- Aquele
que come banana com leite e canta música do desenho. Canta a música daquele
desenho pro meu tio. – ela pediu.
- Mas eu
só sei em inglês. – avisou o menino, fungando. J.C não acreditou no que ouvia.
E no que ouviu em seguida. O garotinho, que segurava um balde cheio de
carrinhos, cantou do início ao fim “Aiunabi iverim best, Ai onon erione...”.
Era a música de abertura do Pokémon. Mas em inglês. Ou no inglês dele. J.C
ria, admirado. Como o menininho se arriscava no inglês, se nem ele sabia o básico
da língua?
- Bora
brincar de carrinho, tio? – perguntou o garotinho, ao terminar de cantar o
inglês engraçado, fungando mais uma vez. Ele deveria estar com alergia ou algo
assim.
- Bora.
Mas antes me diga o seu nome.
- Max.
Meu nome é Max. – respondeu o menino. – Agora bora brincar? - perguntou,
jogando no chão o balde e espalhando carrinhos da Hot Weels.
- Bora.
J.C e
Mirian, que chegou logo depois, se juntaram aos dois no chão da sala.
Brincaram. Brincaram, brincaram. J.C descobriu que não havia sensação melhor do
que ser chamado de “tio” e não há fase melhor da vida do que ser...
Criança.
Ao meu lado, Max, o garotinho responsável pelo meu mais sincero sorriso. |
Em novembro, em comemoração ao dia do músico (22), o blog trará entrevistas com:
Nelinho Brasil
Jackson Pastana
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