Conto: O ingresso
revisão textual:
Silvia Castro
Agora, era só esperar o horário do filme. Em trinta minutos, finalmente, eu assistiria Bilhetes. Nilma,
minha namorada, falava nele sem parar. Se ela não estivesse trabalhando, teria me acompanhado para assisti-lo (novamente) comigo. Porém ainda restavam trinta
minutos para o início do longa-metragem. Fui à praça de alimentação do shopping Caramassa e esperaria ao
menos uns quinze minutos para comprar pipoca e refrigerante.
Todos devem
ter tido a mesma ideia: passear no shopping. A praça de alimentação estava lotada. Consegui uma mesa desocupada porque quase expulsei duas senhorinhas
que devoravam dois milkshakes da Bobs. Mas sentei. Tirei imediatamente
o celular do bolso para conversar com Nilma. Ela poderia estar trabalhando ou estudando, mas estaria sempre disponível para conversar. Quase enfiei meu celular
na orelha pra poder escutar um áudio que ela me enviou.
- Cara, com licença. –
me cutucaram. Uma voz masculina. – Minha namorada e eu podemos sentar aqui contigo? Todas as mesas tão ocupadas...
Olhei rapidamente
para ele e concordei, sem dar a menor bola. O rapaz agradeceu e puxou as cadeiras. Uma voz
feminina também agradeceu. Essa voz, no entanto... Docemente grave... Eu já a
havia escutado antes. Eu só não sabia onde.
Desisti de entender o áudio de Nilma e desviei o olhar para a moça. Um olhar de soslaio foi
o suficiente para reconhecer o rosto. Os lábios carnudos como uma uva; os olhos puxados, meio de lado, meio do avesso; e os cabelos cacheados, já
não tão longos, mas eram ainda volumosos, presos e soltos. Eu a conhecia, sim. Ela trouxe e levou uma das melhores fases da minha vida... Uma fase que eu aprendi o significado de "amizade".
Eu só não
me lembrava do nome...
- Tai?
“Tai”. Meu apelido da
infância. O nome do meu personagem favorito do anime Digimon. Quem me chamava assim era...
- Ene? Eliene?
Perguntei. Lembrei o
nome. Voltei no tempo numa única piscadela. Os anos de ensino fundamental e ensino
médio surgiram vorazes. Uma pancada. Mas uma pancada indolor.
- Não acredito!! Eu.
Não. Acredito! – Ene gritava alucinada. Nós nos levantamos concomitantemente. Não
queríamos nos soltar. Um abraço que poderia abraçar a eternidade. Ela bagunçou meus
poucos fios de cabelo e perguntou:
- Cadê aquele cabelão
do Tai? Hein?! – e me abraçou de novo. – Não tô acreditando... Te encontrei do nada!
– seu sorriso me levava ao clima tenso de colégio.
- Vocês podem me
explicar...? – o namorado, comendo um hambúrguer da Bobs, cobrou. Nós voltamos
aos nossos lugares.
- Cadu, ele é o Tai, aquele
meu amigo de infância, lembra? Adorava anime, todo atrapalhado; jogava
bola, mas era pééééssimo! – riu Eliene.
- Eu não era tão
ruim, não. – tentei me defender. Mas eu era péssimo, admito. Sabia nem chutar. Mas tava lá, atrapalhando o jogo dos colegas.
- Claro que lembro, amor.
Você me falou muito dele! – e nos cumprimentamos. O rapaz pareceu até contente
em me ver. Nem meus pais ficam contentes quando me veem.
- O que você falou de
mim, hein? Agora eu fiquei curioso.
- Diz pra ele, Cadu. –
Ene comeu umas batatas fritas. Estava mais magra. Quando adolescente era gordinha e com os cachos enormes. Isso foi motivo de grandes batalhas
na vida dela.
Cadu engoliu tudo,
tomou uma golada de refri e limpou os lábios com o guardanapo. Após segurar um
arroto, explicou:
- Cara, Ene sempre
disse que tu salvou a vida dela. E acho que ela tá certa. Se ela não tivesse ido
embora pro Maraberto, acho que vocês teriam namorado. Sério. Ou não. A amizade de vocês teria se fortalecido ainda mais. Porque, pelo que
ela me contou, você era incrível!
Sem entender nada a
que ele se referia, pedi que me explicasse melhor. Eu não era tudo isso, não. Eles
estavam confusos, tenho certeza. Vai ver beberam ou fumaram algo antes de irem ao shopping ou a batata frita estava estragada.
Ene soltou uma
risadinha.
- Pra você não deve
ter marcado tanto, Tai. Mas pra mim, sim. – soltou, com um sorriso torto.
A nossa amizade me
marcou, sim. Lembro de cada coisa que passamos juntos. Lembrei ainda mais com esse encontro súbito. Porém, não entendia o que
ela dizia. Ene tomou um gole de refrigerante e tornou a falar:
- Tai, você sabe o
que eu faço hoje? Sou atriz. Já atuei em várias peças de teatro, em musicais. A
maioria, comédia. Agora, por exemplo, vim pra Paztina pra atuar na A vida nunca cansa, escrita e dirigida
pelo Cadu. Vai ser no Theatro da Paztina.
A vida nunca cansa. Eu
não me ligo em peças teatrais. Mas eu já ouvi esse nome naquela semana... Contudo, mesmo assim... Bem, o foco era outro.
- Mas como? Tu? Atriz?
Tu era a timidez em pessoa!
- Sim. E insegura,
também, Tai. – Ene respirou fundo e começou – Lembra que eu sempre era motivo de
chacota na sala? Lembra dos apelidos que me davam por causa do meu cabelo, por
eu ser gordinha?
Eu lembrava
perfeitamente. Por diversas vezes enxuguei as lágrimas de Eliene, afaguei seus
cabelos e acolhi seu soluço. Não foram dias nada azuis. Ou rosas. Ou nenhuma
outra cor tão tenra. Ou nenhuma outra cor.
- Lembra que tu me
defendia várias vezes de umas meninas da turma? Tu dizia assim: “Ela tem
cabelo muito mais bonito que o teu!”. Lembra? – eu lembrava de tudo. – Lembra
que uma delas disse, uma vez, que ninguém nunca ia me beijar porque eu era
gordinha e feia? – eu assenti. Lembrava-me de tudo. De cada momento. – E tu me
beijou logo em seguida. A gente riu muito.
Cadu devorou o hambúrguer. O refrigerante deveria
estar no fim, também. Entretanto, não ousou em interromper.
- No ensino médio foi
quase a mesma coisa, com uma diferença: a implicância vinha dos meninos.
Jamais me esqueci
disso. Jamais. Pra mim, cada situação foi de um aprendizado estupendo. Eliene
fazia muita falta. Acontece que agi de modo tão natural que, às vezes,
ingenuamente, penso que qualquer um o faria. E me perguntei, naquele instante: Como perdemos o contato? E por quê?
- Até que tu decidiu ir
embora de Paztina. – acelerei o final da história.
- Meu pai passou num
concurso público em Maraberto. Ele me deu chance de ficar, mas a vida estava me
dando a chance de ir embora. Não pensa que foi fácil. Eu senti muito a
tua falta. Eu dizia isso nas cartas que te mandava. Até que eu conheci o
Cadu. – e sorriu para o namorado. Ele sorriu de volta. Tinha um pedacinho de pão atolado nos dentes dele. – Sabe o que ele fazia quando eu passava por
algumas situações de preconceito? Pedia pra eu lembrar de algo ou alguém que me
trouxesse boas lembranças. Eu, então, falava muito de você.
- E aí, eu fiquei do
lado dela. – concluiu Cadu, numa mastigada. – Como você fazia. E estamos juntos até então.
Quase cinco anos juntos, cara.
- Onde tu tava esse
tempo todo, Tai? – Ene perguntou. - Te procurei em redes sociais e nada!
Eu não era muito
ligado em redes sociais. A minha vida se resumia ao meu curso de arquitetura,
contei a eles. Agora eu iria iniciar meu mestrado, mas do jeito que as coisas
estavam, eu realmente tinha medo de perder a minha bolsa. Enquanto eu
desabafava sobre meu medo, Cadu me interrompeu:
- Sabe o que eu acho
mais bonito nisso tudo?
- Nisso o quê? –
indaguei. Se ele se referia aos cortes de verba...
- Na amizade de vocês
dois. Eu tenho contato com vários amigos do ensino médio, da faculdade... Às
vezes a gente se encontra. Mas, cara, não é a mesma coisa. Eu, pelo menos, não
consigo mais me entrosar. Nós temos grupos no Whatsapp, mas mesmo
assim. Vocês dois... O brilho de surpresa e alegria no olhar de vocês dois. Eu
poderia até ficar com ciúmes, sabia? – usou um tom de ironia. – Isso mostra que
não há tempo, nem distância que derrote um laço de amizade quando ele é forte,
quando carrega mais que um significado. Ele carrega amor. Vocês se distanciaram... E se reencontraram. Isso não é obra do acaso. O destino une amores que nunca se separaram de verdade.
Podia jurar que
desceu uma lágrima do rosto de minha amiga de infância. Eu podia jurar que
desceu uma lágrima no meu rosto também.
- Mas oh, nós já
temos que ir. – Cadu se levantou.
O abraço que recebi
de Ene foi o mais aconchegante de todos. Nenhum amigo meu havia me abraçado com
tanto afeto. Vai ver era porque eles e eu não tínhamos ficado distantes um do
outro, nunca valorizamos estar juntos... De repente, tive uma vontade doida de
ligar para os meus amigos... Não que eu tivesse muitos. Pensando bem, eu tinha pouquíssimos.
- Obrigado, viu?! –
Ene agradeceu, com um sorriso e foi embora. De novo. Sentei-me novamente e
só então percebi duas coisas: eu estava atrasado para assistir ao Bilhetes e não troquei número de
telefone com ela. Perdemos essa chance. Depois de tanto tempo distantes, o
destino nos juntou e nos separou. Eu iria deixar que o tempo nos unisse
novamente. Como o fez, sem pretensão.
Assim que encontrei
Nilma, contei tudo sobre Bilhetes. Discutimos
o filme todo. Cena por cena. Mas quando eu estava prestes a descrever a cena
que eu mais gostei, Nilma deu um berro:
- AAAAAH! Amor, quase
esqueço de te contar! Ganhei dois ingressos pra uma peça de teatro. E a mamãe
tá doida pra assistir! Como não faz muito teu estilo, eu vou dar pra
ela, tudo bem?
- Ah, por mim, okay. - respondi, pensando no que havia pra comer na geladeira da casa dela.
- Ótimo. Ela tava
doida pra assistir essa tal de A vida
nunca cansa. Na verdade, ela gosta de...
- O quê? Espere... A vida nunca cansa?
- Sim. Parece que é
um drama. Mas a atriz só faz comédias... Por quê?
- Nilma, Nilma,
Nilma... Fale com a minha sogra, pois eu quero esse ingresso de volta!
- Por quê?!
- Amor, você lembra
que eu te falava de uma amiga minha de infância e que eu nunca mais a vi...? –
Nelma, curiosa, concordou. Perguntei: - Pois bem, tu não acredita em destino,
né? Porque a partir de agora vai começar a acreditar.
- Do que tu tá falando?!
- Amor... Lembra dos teus amigos, teus vizinhos da infância, lembra? Tu sempre diz que sente falta deles.
- Sim...
- Liga pra eles. Manda uma mensagem. Ao menos pra um deles. Deixa o destino ajudar a unir vocês. Eu sei do que tô falando...
- Do que tu tá falando?!
- Amor... Lembra dos teus amigos, teus vizinhos da infância, lembra? Tu sempre diz que sente falta deles.
- Sim...
- Liga pra eles. Manda uma mensagem. Ao menos pra um deles. Deixa o destino ajudar a unir vocês. Eu sei do que tô falando...
Comentários