Conto: Amigos do Crime (Capítulo 4)
Capítulo 4 – No Gatilho
(revisão de texto - Jéssica Katarina)
O quarto de Selton era um
prêmio na loteria para os invasores. O netbook, DVD, a smart tv pendurada no
teto, um estante carregava um fila de perfumes, acessórios caros e desnecessários,
pares de sapatos dentro do armário Lisandra sabia que as roupas de marca seriam
mal utilizadas pelos bandidos. Naquele quarto, um rapaz de corpo forte, suado e
trêmulo, calça jeans de botão aberto, que ela conhecia por ser seu primo metido
que morou anos nos Estados Unidos; uma negra de corpo mais sarado que Lisandra,
mais sexy, porém com um rosto nem tão simpático (além de aterrorizado) e o
dono, Selton, que veio de um estado de embriaguez lunático, molhando o piso com
pingos de suor do seu cabelo encaracolado. Os três com as mãos para cima. E um
ama arma apontada para eles.
Os lábios de Osví abriram
um lento e ardiloso sorriso para Lisandra. Ele percebeu que o nervosismo da
garota finalmente se mostrou presente. Rindo apenas com o fungar do nariz, ele
tentou tranquiliza-la:
- Relaxa, Lisandra. Eu não
vou apontar a arma pra você. Só para eles. – a arma mirava de um para o outro.
Mas Lisandra ainda não deu sinais de sossego. Apesar de achá-la louca por
querer segui-lo, largando sua casa cheia de mordomias em plena madrugada de
Natal, Osví aprendeu a gostar da companhia dela. Lisandra não se sobressaltou e
muito menos demonstrou covardia ao encontrar com seus “amigos de crime”, ser
cantada por um e ouvir desaforos de um deles. Era a riquinha mimada mais
despeitada e valente que ele conhecera. Foi a única garota mimada que ele teve
chances de conhecer e permitiu se aproximar dele. Não tinha intenção alguma de
machucá-la. – Eu tô falando sério. Não vou atirar em você, Lisandra.
- Eu acho que eu... – Lisandra
titubeava, pondo os cabelos crespos para trás das orelhas – Acho que eu
acredito em você.
- Eu não vou te machucar,
Lisandra. Mas não sei se posso dizer o mesmo sobre seus amigos aqui. – mentiu
Osví. Faltava-lhe coragem para atirar em alguém. Esse serviço seria feito por
um de seus comparsas. E só então, num insight, ele atentou para a situação: os
três ali teriam que ser descartados. Osví poderia ser denunciado, reconhecido e
ele fugiria como tantas outras vezes; e se fosse preso, seria solto. Porém, Lisandra
não. A culpa era inteiramente dela por estar ali, presenciando e sendo cúmplice
de um crime, mas não queria que ela fosse parar atrás da cadeia. A riquinha
tinha muito a viver e não seria uma vida condenada, como a dele. – Vá lá em
baixo e peça ao Japonês uma sacola. – ordenou ele à garota.
- Mas... Mas, eu não vi
japonês nenhum aqui. Só tem brasileiro. – ela o olhou, confusa.
- É aquele neguinho
esquelético lá em baixo. – respondendo, com a arma apontada para o dono da
casa.
- Mas... – a confusão com
o apelido do garoto foi mais forte que o nervosismo – Por que esse apelido se
nem japonês ele é?
- Ah, é porque ele gosta
de assistir desenhos japoneses. – explicou Osví, mantendo a postura bandida.
Com uma careta de desaprovação, Lisandra disse:
- Vocês podem ser
bandidos, mas não tem nada de criatividade. Eu vou descer.
Vicente gritou por Lisandra,
mas ela o ignorou.
- Cala a boca, playboy! –
gritou Osví.
- Mas ela é minha prima. O
que ela tá fazendo aqui?! – perguntou, perplexo.
- O que ela tá fazendo
aqui? Veio te dar boas vindas. – rindo do mauricinho. – Veste essa camisa e
cala essa boca. Não to a fim de ver homem sem roupa, não. ANDA, PORRA!
Vicente pegou sua camisa amassada
e, com as mãos tremendo, a vestiu. Era uma camisa vermelha de botões. Uma cor
sugestiva.
Apressada, Lisandra chegou
no quarto com uma espaçosa sacola de viagem azul.
- Essa sacola é da minha
mãe! – disse Selton. Vicente apontou a arma na orelha dele e o ameaçou:
- Essa sacola não é mais
da sua mãe. Nada mais é seu ou dos seus pais, playboy! Agora – e se direcionou
aos três – vocês vão colocar tudo. Tudo o que tiver de valor aqui nesse quarto
nessa sacola. Anda!
Os três, desajeitados,
ficaram de frente para a cômoda, mas não conseguiram se mover. Bravo, Osví
bateu com a ponta do revólver na cabeça de Selton.
- Vocês estão me
irritando! Coloquem esse DVD, televisão, perfumes, roupas, o que tiver aqui
nesse quarto, senão vou ter que usar o meu brinquedinho aqui. E em silêncio!
Imediatamente, os três
obedeceram. Lisandra o chamou para um canto e entregou a ele um facão de
cozinha e duas luvas.
- Aponte a arma para os
três. – mandou Osví. Ela obedeceu. Lisandra sentiu o peso do revólver e uma
estranha animação ao segurá-lo.
- Sabe que nunca atirei,
mas to tendo curiosidade? – ela comentou.
- Você não é assassina,
prima. – disse Vicente, enquanto tirava os cabos da TV.
- Cala boca, Vicente! –
gritou a moça negra. Com as luvas cobrindo suas mãos, Osví voltou a apontar a
arma para os três.
- E esse facão? – Lisandra
perguntou, tocando a na ponta afiada da arma.
- Ficará com você, caso
precise.
Lisandra sorriu com
satisfação. Segura, andou em direção ao primo, que estava de costa para ela, e
apontou a faca nas costas dele. Sentindo a ponta, ele se virou e quase se feriu
ao dar de cara com Lisandra.
- Prima, larga isso, pelo
amor de Deus! Você não é delinquente. Para com isso!
- Eu não sou. Mas você é.
– com a ponta da faca na testa dele. Osví se assustou com a determinação da riquinha
mimada. Nenhum tremelique. Nenhuma tensão. Lisandra estava curtindo ameaçar o
primo com a faca.
- Eu não sou delinquente!
Por que você tá dizendo isso?! Larga essa faca!
- Mas o seu pai é. Seu pai
engana o meu com essa história de que o pagou com uma transferência em
dinheiro, um dinheiro que nunca chegou. Ele quer enganar quem? Foi uma grana
alta! Por isso eles têm tanta raiva um
do outro.
- Meu pai jamais faria
isso com o seu. Eles são irmãos! Meu pai depositou o dinheiro, sim. Ele já comprovou
várias vezes. O banco que deve tá roubando dinheiro dele.
Osví ouvia aquela
incoerente história atentamente.
- Lisandra, deixe de
ser... – Vicente não terminou a frase. Ele, com agilidade súbita, tirou a faca
da mão de Lisandra a segurando pela ponta, puxou-a para junto de si a prendeu entre
seus braços, quase a enforcando. Presa com uma defesa pessoal chamada
“gravata”, Lisandra tentou se soltar. A ponta da faca na direção cabeça da
prima. Osví sentiu raiva por ter permitido a coisa sair do controle. – Você e
seu pai são dois idiotas, minha prima. Aliás, o meu também.
- PELO AMOR DE DEUS, O QUE
TÁ HAVENDO AQUI? – gritou a moça negra, perplexa. Ela segurava os cabelos,
desarrumando-os. Enjoado, Selton vomitou amarelado no chão do seu quarto,
espirrando vômito na parede e sujando por fora da sacola.
- Tu é fraco mesmo, hein!
– xingou Vicente. Ele viu a arma de Osví apontada para ele e bravejou com a
moça e o amigo. – Porra, vocês dois poderiam me ajudar agora, hein!
- Eu não vou pegar em arma
nenhuma. – recusou-se a moça.
- Valeu aí, Telma! –
forçando o braço e dificultando a respiração da prima. Osví não se intimidava
com a arma na sua cabeça – Você não me mete medo, seu loiro feioso.
Osví não segurou a risada.
- Loiro feioso? Sério?
Você sabia que eu conheci a sua prima porque ela me confundiu com você?
- Quê? Otária! –
enforcando-a. Osví se desesperava ao ver que não sabia como agir par salvar Lisandra.
Ele poderia atirar em Vicente e nos outros dois, mas além de o barulho do
calibre chamar atenção da vizinhança, também não tinha peito para disparar. Deseja
ter a coragem de riquinha mimada. Mas o trauma por ter perdido o pai em uma
troca de tiros era muito mais perturbador. Sentiu-se uma vergonha entre os
criminosos na Rua 8.
- Larga ela. – mandou Osví,
com a respiração ofegante.
- Me obrigue. – encarou
Vicente, assombroso. Mas a bravura do mauricinho foi atingida pela canela. Uma
bala encravou na perna esquerda do rapaz e o derrubou na cômoda, derramando
alguns poucos vidros de perfume que restavam. Lisandra se soltou e foi para
junto de Osví. Eles se perceberam desconcertados quando ela o segurou na mão e
se soltaram.
- Você é um molenga mesmo,
Osví. – criticou Raposa, recolhendo a arma na sua cintura e guardando o facão
que Vicente deixou cair no chão. A voz irritante a revelou por trás do capuz
escuro.
A perna de Vicente jorrava
sangue no chão do quarto como uma torneira aberta. Telma e Selton, ao
assistirem o tiro na perna do amigo, desmaiaram quase que concomitante. Lisandra
fez careta de nojo e se afastou para que o vômito de Selton não respingasse
nela.
- Não era pra você atirar,
Raposa! – criticou Osví. - Agora vão acionar a polícia! E o porteiro...
- O Japonês deu um jeito
no porteiro assim que vocês subiram a escada. – respondeu com frieza.
- O que aconteceu com ele?
– perguntou Lisandra.
- Não é da sua conta. –
replicou. – E você, hein, Osví, agora era hora de você fazer a capa pra sua
amiguinha patricinha e fingir que é homem, mas você só aponta essa porra dessa
arma aí pra esse filho da puta e não atira!
Lisandra, com os olhos
fixos na poça de sangue se formando no chão, perguntou:
- Por que fazer a capa?
- Ai, caralho! – berrava
Vicente, segurando a perna sangrenta.
- Ah, ele não te contou? –
perguntou Raposa, aproximando-se dos dois. Vicente deu um berro ao levar outro
tiro e na outra canela. Raposa não poupou as balas. Eles se afastaram
automaticamente com o derrame de sangue. – O seu amiguinho Osví...
A porta do quarto se abriu
num baque.
- Vamos logo! – chamou
Tabaco, segurando uma sacola pesada. – Já pegamos o suficiente e a vizinhança
se espertou. Andem logo!
- Nós já vamos? – Raposa
perguntou.
- Tucano já tá no carro,
só esperando por vocês! Vamos! – e desceu as escadas. Sem dizer nada, Raposa
correu atrás dele.
- Nós temos que ir, Osví.
– disse Lisandra, encarando o primo, que mesmo com o sangue encharcando o chão,
sorria para ela. – Do que você tá rindo?
- Você pensa que o meu pai
roubou... Aí... – tapando uma das pernas com as mãos – Você pensa que quem
roubou seu pai foi o meu. Mas não foi, sua idiota. Também não foi o banco. Eu
fiquei responsável para transferir o dinheiro. Agora, adivinha.
- Foi você. – concluiu
Osví. Mirou a arma na cabeça de Vicente, que assentia sorridente, sentiu o peso
e disparou o gatilho. O sangue derramava de suas pernas e testa. O último sorriso de
Vincente foi de gracejo. Duas linhas tornas e grossas de sangue escorreram pelo
rosto do primo mauricinho. Osví sabia que matar somente Vicente não adiantaria
de nada. E evitando pensar mais, ou não o faria, mirou no peito de Telma e
atirou, e atirou na cabeça. Selton recebeu uma bala nas mesmas partes do corpo.
Osví se espantou consigo por não sentir a mesma aflição de antes ao atirar em
alguém. Uma sensação de astúcia e potência o preencheu. Jamais pensou que ver
três pessoas com balas na cabeça e no peito o fortalecesse tanto.
- Por que você fez isso? –
Lizandra perguntou, assustada.
- Eles iriam acordar e
iriam lembrar da sua cara. – respondeu calmamente. E lembrou que tinham pressa.
– Vamos!
Com a sacola levando os
pertences de Selton nas costas de Osví, correram até o andar de baixo e
encontraram o restante dos jovens desacordados, amarrados e amordaçados. Tudo
que havia de valor na casa os “amigos do crime” tinham levado. Osví bravejou
palavrões ao chegarem do lado de fora da casa ao ver que o carro de Tucano não
estava mais lá. Eles os abandonaram. O desespero de Osví o assombrou quando viu
as casas ao lado acendendo as luzes. Ouviu buzinas de carros se aproximando e
gritos descontrolados a sua volta. O desespero estava maior na afeição de Lisandra.
- DROGA! – gritou Osví.
Sentiu Lisandra cutucar no seu ombro e apontou para o lado direito.
- Acho que só temos um
jeito.
Do lado esquerdo havia um
carro estacionado, duas motos e... Uma bicicleta.
Comentários
A morte dele foi um grande plot twist, necessário pra garantir a segurança de Lisandra depois dessa noite de loucuras.
Muito interessante.