Conto: Os versos vermelhos
Apenas dois lugares
vazios no ônibus: um nos fundos e outro ao lado de Fagner. Agarrado à mochila,
descansava os cabelos curtos e suados na janela de vidro do transporte. O sol
maltratava a cidade, num horário injusto de duas da tarde. Fagner escolheu a
linha "Praça da Justiça" pela volta oval que fazia pela cidade. Não
pensava em voltar pra casa até que estivesse realmente em paz. Avisou aos seus
pais que passaria a tarde na casa de J.C, seu primo e melhor amigo. Não era uma
mentira, porém tinha a intenção de ficar mais um tempo sozinho, nem que fosse
dentro de um ônibus lotado.
Estava sendo difícil
para Fagner lidar com aqueles dias tão nebulosos. Os seus pais não entendiam
que ele, aos 17 anos, enfrentava uma chuva de novidades nos seus sentimentos. O
mais importante: não escolheu senti-los. Não escolheu gostar de quem estava
gostando, muito menos desejar. Fagner conhecia pessoas novas, com gostos e
desejos semelhantes do dele, que o entendiam e o aceitavam, se divertiam como
ele se divertia. Acima de tudo, o rapaz de olhos tristes, lábios miúdos e
queixo fundo estava se conhecendo, se descobrindo. E isso não era fácil.
No entanto, Fagner
estava absorto demais nos seus conflitos. Também não aguentaria esperar até
encontrar J.C. Tirou da mochila um lápis e o caderno. As paradas abruptas, os
apertos e a quentura do ônibus não o impediram a rasurar uns versos no papel.
Pessoas sentaram ao lado de Fagner e se levantaram. Nada o tirou a
concentração. Estava no fim dos versos, que saíam rajados, quando uma garota
sentou ao lado dele. Cumprimentou-o com um rápido sorriso e começou a vasculhar
a bolsa pesada a procura de algo. Fagner não sabia disfarçar. Eles deveriam ter
a mesma idade. Branca como a maçã, de cabelos vermelhos como a neve. Um corpo
certo, sem excessos. A atenção de Fagner tomou o rumo da criatura de aura
angelical que desceu ao lado dele.
- Aí, meu Deus. Vou
ficar maluca! – a menina largou a bolsa e cruzou os braços. – Não aguento mais
estudar. Vou ficar doida!
A menina desabafava.
Fagner só não sabia se era com ele ou se estava falando sozinha. O espanto no
rosto dele o foi percebido pela garota.
- Ah, desculpa. –
pediu a garota, educadamente. – É que eu realmente não sei como tô aguentando.
É seminário, relatório, provas... Ainda bem que eu não faço tudo sozinha.
Sempre divido com as minhas amigas, senão eu estaria sufocada. Tô louca pra
ficar de férias. Tirar um tempo pra ficar em casa, sem ter nada pra fazer... –
disparou, mas de repente se calou. A menina fez um jeito dengoso, meio que se
desculpando. – Ah, desculpa. Eu tô falando muito, né? Eu sou assim mesmo.
A reação de Fagner
foi um sorriso. A menina o tirou da tristeza por aqueles minutos. A liberdade
no jeito tenro o libertou de suas próprias algemas. E ela percebeu.
- Você tá bem? – ela perguntou,
parecendo preocupada. Os cabelos avermelhados dela combinavam com a brancura da
sua pele. Era uma garota diferente. A presença dela o trouxe conforto. - Acho
que você tá meio triste.
- Eu tô, um pouco. –
respondeu Fagner, vendo-se longe das algemas.
- Você tá a fim de
conversar? – a menina era ainda mais doce, se dispondo a ouvi-lo. O ônibus
freou com violência, derrubando-o nele. – Ah, desculpa. Mas... Ai, meu Deus.
Espera. – a menina afastou os fios ruivos de sua testa, abriu a bolsa e tirou
uma sacolinha de lá. Havia alguns brigadeiros nele. – Ainda bem. Pensei que
tinha amassado. Ah, já sei. – ela tirou um dos brigadeiros da sacola e entregou
a ele. – Toma. Pega. É uma delícia. A minha amiga que fez. Encomendei dela.
Você vai gostar.
A tristeza era tanta
que a fome se disfarçou. Fagner não faria a desfeita para uma garota bonita e
gentil como aquela. Aceitou. O brigadeiro estava saborosíssimo.
- Obrigado. – Fagner
agradeceu. E se encantou com os olhos esverdeados e claros da garota – Tá muito
bom.
- Chocolate afasta as
nossas tristezas, sabia? Eu tô vendo que você tá meio triste. Espero que passe
logo.
- É, não tô nos meus
dias mais alegres. – explicou Fagner, tentando sorrir. – Em casa não tá nada
bem, muita coisa de uma só vez acontecendo comigo... Mas não vou ficar te
enchendo com meus problemas.
- Olha, por mim você
poderia falar à vontade, mas eu vou descer daqui a pouco. Vou encontrar um
amigo meu no shopping. – ela suspirou pensativa - Mas vou te dizer uma
coisa: seja você mesmo sempre. Não sei o que você tá passando, mas haja sempre
como mandar seu coração, desde que seja com alegria, caráter e com
autenticidade. Seja sempre assim, e com Jesus Cristo no seu coração que tudo
vai dar certo. Pensa que ele vai tá sempre do teu lado. Pense assim e sempre
vai ter uma luz pra te guiar.
Fagner expandiu O
sorriso mais sincero. Aquela garota que ele nem sabia o nome...
- Antes que você vá,
- apressou-se. Ela se organizava para levantar, sem notar que havia deixado a
bolsa parcialmente aberta. – me diga seu nome.
- Ah, esqueci de me
apresentar. Nina. Meu nome é Nina. – já de pé.
- Eu sou o Fagner. E
obrigado. Você me animou muito hoje.
Nina liberou seus
dentes de algodão e alinhados num curto sorriso. Ficou de costas, com
dificuldade para sair. Fagner aproveitou que ela não o via, escreveu
apressadamente na página do seu caderno que havia os versos, arrancou-a e
colocou na bolsa dela.
- A sua bolsa tá
aberta, Nina. – avisou Fagner. Nina fechou a bolsa, agradeceu e desceu na
parada em frente ao shopping.
Um rapaz cabeludo
sentou ao lado de Fagner. O coração em paz. Tirou o celular da mochila e enviou
para J.C: “Tô indo pra tua casa, primo”. Fagner se sentia mais leve. Aquela
menina ruiva, branca como o céu, de olhos brilhantes, entrou no ônibus para
alegrá-lo. Em pensamento, agradeceu-a.
O shopping se cercava
de grupos de adolescentes, mulheres com sacolas de compras, outras correndo
apressadas, amigos tagarelando... Entre tanta gente, Nina se sentia só. Assim
como Fagner, ela não estava nos seus melhores dias. Além dos estudos,
conhecia-se mais a cada dia. Era muita novidade para ela. Ainda assim, doce por
natureza, tentou aplumar alguns minutos do dia daquele garoto.
Nina abriu a mochila
para pegar mais um brigadeiro. A conversa que teria com seu amigo talvez não
terminasse como ela queria. O coração também estava aflito. Ao abrir a mochila,
contudo, teve uma surpresa. Havia um papel dobrado. Não lembrava dele. Curiosa,
abriu-o. Uma letra bonita, mas com algumas rasuras. Um poema escrito a lápis,
sem título. Já não estava mais se sentindo tão aflita.
“Quem é capaz de
conhecer a si mesmo?
Alguém já conheceu o
seu todo?
Ou nos é permitido
apenas um pouco a cada dia?
Somos um estranho que
reside no conhecido
Um estranho tímido,
que não se permite ser totalmente conhecido.
Talvez nem percebido.
Há quem caminhe a
estrada da vida sem ao menos saber
Que não existe um só
de nós mesmos
Há quem viva sem ao
menos se dar conta de que
Não somos um só “eu”
preso no corpo.
Somos dois, cinco,
milhares
Que se fundem no um
Somos o que
conhecemos de nós
Uma pálida imagem da
infinitude
Uma migalha da
personalidade (ou seria “das”?).
Feliz é aquele que
caminha pela estrada
E se encontra em cada
estação
E ao entrar-se, se
convida para um café.
Obrigado por ter me
arrancado um sorriso hoje,
Fagner”
Nina, em pensamento,
agradeceu ao garoto que conheceu no ônibus. Ao terminar de ler o poema, deixou
rolar uma lágrima e alargar mais um doce sorriso. Já não se sentia aflita.
Sentia-se em paz.
Em paz.
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O poema acima foi escrito pela Bia Oliveira. Um presente dela para mim. Essa minha amiga linda merecia uma homenagem. Talvez continue se tornando um pouco comum mesclar pessoas tão especiais pra mim com a ficção dos meus textos.
Te amo, gatíssima!
Te amo, gatíssima!
Bia Oliveira e Eu, na última aula de Sintaxe |
Comentários
Orgulho de vc Victor.
Gostei do poema da Bia tb.
Bj.
Fanzoca