Conto: A namorada de um amigo meu

Inspirado na canção de Roberto e Erasmo Carlos, "A namorada de um amigo meu".

Conto: A namorada de um amigo meu


O meu prazeroso bocejo anunciava o sono quase vencido. A minha cama confortável, meu travesseiro fofo e a escuridão que se alojava no meu quarto não me permitiam mais nenhum segundo de esperteza. Tia Dália dormia no quarto ao lado, num ronco de motor de navio. Fechei os olhos e senti o cansaço massagear a cabeça e me transportar para a sonolência. Nada, nada poderia me arrastar dali. Quase nada. Meu celular estava ao meu lado. Tocou irritantemente. Olhei para a tela e li: “Luso”. Era o tipo de amigo sem-noção: me ligava às onze da manhã e às onze da noite; às três da tarde e às três da madrugada... Minha culpa. Intimidade causa confusão massa cefálica das pessoas.
- O que é, Luis Sobral? – inquiri, tentando recobrar o sono. A resposta seria a de sempre: ele  queria conversar. Por estar entediado ou com insônia, sempre ligava para o amigo idiota. Isso mesmo, estou falando de mim.
- Ah, se você disse meu nome completo e não o meu apelido é por quê...
- Porque eu tô puto. Quero dormir. – eu pretendia desligar.
- Não. Isso quer dizer que você não está com sono e vai conversar comigo. – concluiu, errônea e cinicamente. Bocejei, decidido a me despedir. – Mas não vamos conversar por telefone. Você vai vir aqui na minha casa. Agora. Agora, Plínio.
Ainda deitado, com os olhos fechados e o sono me dominando, brinquei:
- Okay, a conversa tá legal, mas eu vou dormir. Boa...
- Quero te apresentar a Kauanne. Minha namorada.
A palavra “namorada” me espertou. Sentei-me na cama, massageando o rosto para afugentar o sono, e pedi mais explicações. Mas Luso se recusou, exigindo que eu saísse de fininho, sem fazer barulho, enfrentasse a rua soturna, dobrasse a esquina, desse mais alguns passos e tocasse a campainha da terceira casa à esquerda. Eu não tocaria a campainha porque ele já estaria me esperando, e para falar da Kauanne, a novata do curso de inglês, que eu nunca a vi, mas já a conhecia só de ouvir o nome dela sempre que meu amigo e eu nos encontrávamos. Ele não estaria em paz enquanto não ficasse com ela.
Ir às duas da manhã à casa de um dos meus melhores amigos ou ir às duas da manhã à casa de um dos meus melhores unicamente para conhecer a nova namorada dele? O que seria o mais absurdo? O mais absurdo foi eu ter vestido uma camisa, pegado o meu chaveiro, fechado a porta, orando para que nenhum assaltante surgisse no meu caminho, dobrado a rua e me deparado com Luso sentado na varanda da casa. Havia uma garota ao lado dele. As mãos dos dois estavam mais unidas que o sol e a lua. Aquela deve ter sido a primeira vez que Kauanne e Luso conversavam e já estavam namorando. Andei mais rápido. Os dois me enxergaram e se levantaram.
O sorriso radiante de Luso falava por si. Eu não saberia dizer há quanto tempo eu não o via tão feliz. Porém, não foi isso que me chamou atenção. O nome era singular: Kauanne, assim como a beleza. Os lábios dela sorriam vagarosamente quando eu me aproximava, formando um rosto angelical e um queixo proeminente. Os olhos de Kauanne me diziam que ela também se considerava uma corajosa por estar ali, depois das duas da manhã, namorando um cara que ela acabara de conhecer. As sobrancelhas se levantaram atentas e seus dentes tão bem alinhados se igualaram em amabilidade.  Me abraçou, como se fossemos amigos de longa data.
- Essa é a Kauanne, minha namorada. – anunciou Luso, orgulhoso. – E esse é o Plínio...
- Um dos seus melhores amigos, já sei. – terminou Kauanne, abraçando-me, e rindo da situação. - Luso falou muito de você. Muito... – rindo outra vez. Ela ria com facilidade... Eu tinha pouca paciência com pessoas falantes, mas não estava achando ruim.
O casal de namorados voltou para a varanda e me chamou para sentar ao lado deles. A rua estaria deserta se não fosse por alguns taxis que corriam apressadamente. Abrilhantando a noite, a lua fazia companhia ao meu amigo e a sua simpática namorada.
Na minha cama, era onde eu deveria estar. Mas Luso estava louco para namorar novamente e me apresentar a sua namorada o faria feliz. O último namoro o trouxe feridas difíceis de curar, mas não impossíveis. Uma nova garota, um novo amor, tranquilizaria o coração de Luso.
Kauanne não era a primeira namorada que Luso me apresentava. Com seus 19 anos, meu amigo namorava uma garota diferente a cada dois meses, e eu, com a mesma idade, namorei apenas... Ah, deixa pra lá. O curioso era que pela primeira vez eu senti uma pontinha de inveja. E incômodo. A presença dela me intimidava de um modo estranho, e eu não conseguia desenvolver assunto nenhum na presença deles.
- Eu não acredito que você veio até aqui, a essa hora da madrugada, só para me conhecer! – Kauanne, num tom de voz como se estivéssemos em festa agitada.
- Para conhecer você: minha namorada. – retificou Luso, beijando-a carinhosamente. Meigamente. E enjoativamente. Eu estava acostumado em ficar de vela par Luso, mas aquela vez foi o oposto. A inveja bateu mais forte. Os lábios de Kauanne combinariam nos meus também. Meus pensamentos me levavam a um beijo existente.
- Não faça seu amigo de vela, Luso. – reclamou Kauanne, nem um pouco brava, e voltou a beijá-lo. Para quebrar aquele clima chato, parabenizei-os.
- Fico feliz pelo namoro de vocês. De verdade.
- Eu sei que fica. – Luso estendeu a mão para que eu a pegasse. Cumprimentamo-nos com um aperto de mão e com um encontro dos dois punhos fechados, enquanto os dois ainda se beijavam. Tentei quebrar o gelo novamente. Porque eu já me imaginava no lugar de meu amigo. Imaginava o gosto do beijo da namorada dele.
- O último namoro de Luso não deu nada certo. Espero que você o faça feliz, Kauanne.
- O meu também não. Mas é passado. Prefiro esquecê-lo. – ela disse, evasiva. Toquei no ponto fraco.
- E vai esquecer. – Luso a beijou novamente e ela se levantou.
- Vou entrar para tomar água, tá legal, gatinho?
- Tá legal, gatinha. – e jogaram um beijo ao vento. Luso se virou para mim e, ansioso, me dando socos fracos no ombro, perguntou:
- Pode dizer: ela é linda, não é? Pode dizer, pode dizer. Ela é ou não é linda?
- É, é sim.
- É linda. Kau é linda. Ela é mais que linda. Ela é...
- Apaixonante. – conclui e me arrependi na mesma hora. Luso não percebeu a minha franqueza e concordou, sorrindo. Tocou no meu ombro e agradeceu:
- Valeu por ter vindo, cara. Eu queria que você conhecesse Kauanne. Tô louco por ela. E espero que vocês dois se deem bem.
- Eu também espero.

Um namoro que se preze é composto apenas por duas pessoas, tanto faz os sexos, o namoro é composto entre duas pessoas somente. Porém, Plínio nem sempre entendia isso. Ele dizia que nós dois éramos uma dupla, e por isso eu tinha que acompanhá-lo em quase todos os encontros com as namoradas. Algumas se divertiam até mais comigo do que com ele. Meu amigo era grudento demais. Quando ele não me chamava era porque havia uma coisa que ele gostaria que acontecesse apenas entre ele e a garota: sexo. Nessa hora, ele me queria o mais distante possível. Eu também preferia me manter quilômetros de distância.
Luso tentava me arrastar pra passar um tempo com ele e Kauanne. O primeiro encontro, depois daquela madrugada, foi decepcionante. Eu não sabia como me comportar. A risada incontida dela, quando abafava com as mãos e depois mexia nos cabelos... A dança rebolada que fazia quando ouvia uma música agitada... A alegria que sentia quando nos vencia no UNO... O abraço que deixou o perfume na minha camisa. Uma única tarde foi o suficiente para que eu evitasse as próximas saídas. As minhas desculpas eram as mais esfarrapadas possíveis. Desde que eu me apaixonei por Susan, havia muito tempo, eu não sentia algo parecido. Com Susan não fui correspondido. Assim como eu não seria com Kauanne. Não me declarei à Susan porque tive medo de levar um fora. E assim seria com Kauanne. 
Tia Dália veio até meu quarto quando desliguei o celular. Eu cancelei um décimo convite para sair com Luso e Kauanne. Ela se sentou na cama ao meu lado, afundando-a com seu peso levemente pesado, e, preocupada, me abraçou, sufocando-me.
- Também gosto muito da senhora, tia. – eu retribuí o abraço inesperado. Ao me soltar, perguntei: - Mas... Por que esse abraço?
- Por quê? É a primeira vez que você se oferece a me ajudar no serviço de casa.
- Ah, tá.
- Plínio, você nunca se prontificou a me ajudar no serviço doméstico. Você tá doente, tá? Me diz o que tá acontecendo. – pedia, apreensiva. – Eu sei que não sou seus pais, eles não moram aqui, mas fique à vontade pra conversar comigo. Desabafa, filho.
A frase “Desabafa, filho” era o que eu precisava e eu não tinha consciência. Havia dois anos que eu não morava com meus pais, a figura mais próxima a um irmão era Luso. Ele não era o mais adequado para eu chorar litros de sinceridade, naquele caso.
- Certo, tia... Eu... Eu tô apaixonado pela namorada do meu melhor amigo.
Soltei, sem delongas. Tia Dália piscava emudecida. Ela cruzou os braços e depois descruzou. E, como se estivesse surda, perguntou:
- Oi? Você está apaixonado pela namorada do Luso?
Titia me olhou ofendida. Afundou a cama mais uma vez, cruzou os braços, de um jeito como se fosse a dona e proprietária da sabedoria universal.
- Você e o Luso não se encontram mais desde você saiu de madrugada para conhecer a namorada dele, acho que vocês ainda saíram juntos uma única vez...
- Mas eu não disse que tinha saído de madrugada... Como a senhora sabe...?
- Eu tenho sonho fácil, esqueceu? E você não é tão sutil como pensa. Pois bem, eu te ouvi dando desculpa para não ir encontrar com ele e a namorada e já ouvi algumas outras vezes. Como essa de hoje: você nunca se ofereceu para me ajudar em casa. – concluiu, com um olhar de quem carregava experiências na vida. Tia Dália me convenceu.
Me rendi.
- Tá, tia, então... É isso. Eu... – com o desespero entalado na garganta, arrisquei: - Desde que eu vi a Kauanne, tia, naquela madrugada, eu, eu... Eu fiquei doido. Não me concentrei em mais nada que não fosse o sorriso, a gargalhada, o jeito dela... Ela... Ela por inteira. E ela é a namorada do meu melhor amigo. Eu sei que isso é errado, mas nem mesmo sei como isso aconteceu.
- Plínio, você tá bem ferrado, sabia?
- Obrigado pelo apoio, tia – agradeci, ironicamente - Tia, eu sei que outros amigos nossos já perceberam, mas eu tento disfarçar pra ninguém notar. Mas eu... Eu não sei mais o que faço pra ninguém saber que estou gamado assim, porque se eles, se eles souberem? O que eles vão pensar? Vou pensar que eu sou um fura-olho, né? Eu não quero que me chamem assim! Tia, eu não quero gostar dela. E se a nossa amizade acabar? E se...
- PARA! – gritou tia Dália, segurando-me pelos braços para tentar me acalmar. Ela olhou para o relógio e arregalou os olhos ao verificar o horário. - São perguntas demais! Tô ficando tonta! – ela me largou, mais calma. Sabiamente, inquiriu: - Quer um conselho? – eu assenti. – Assim que tiver oportunidade, conversem, diga a verdade, se afaste por um tempo, mas seja sincero. Perca a garota, mas não perca o amigo. Há só uma coisa pior que perder uma amizade: perder pai e mãe. Então, não faça bobagens.

A casa estava uma imundície! Minha tarefa era a varrição e a de tia Dália era passar roupas. Eu pensava numa justificativa que me desse menos trabalho para a próxima vez que meu melhor amigo e a bela namorada dele me chamassem para sair. A minha coluna implorava para que eu largasse a vassoura quando a campainha da casa tocou. Cantarolando “O meu amor virou brinquedo pra ti/ põe na minha boca o mel, logo em seguida o céu”, tia Dália atendeu a porta, e com um “Ops”, me chamou. Era Kauanne.
A bela morena e namorada de Luso cumprimentou tia Dália com um “Oi, tudo bom?” e, sem esperar resposta, entrou com andar minucioso para não atrapalhar a limpeza e foi até mim. O cheiro de shampoo me forçou um suspirou e a minha suspeita estalou com as intenções dela: “Posso conversar com você um minuto? No teu quarto”.
Tia Dália permitiu que eu fosse ao meu quarto com um gesto, me expulsando da sala e com um olhar pediu pra eu não fazer nada que eu fosse me arrepender depois. Fechei a porta do quarto e, segurando as mãos no bolso, timidamente, perguntei:
- Tudo bem, Kaunanne?
- Quem te faz essa pergunta sou eu.
- Por quê?
- Por quê? Você nos evitou todo esse tempo. Te convidamos pra várias coisas e você negou todas. Mas o que soou mais estranho para o Luso foi você ter recusado sair conosco para ajudar a sua tia no serviço de casa. O Luso disse que você mal lava a louça, Plínio! O que tá havendo?
- Kauanne, eu prefiro conversar sobre isso com o Luso.
- É sobre mim? – inquieta, segurou as minhas mãos – O problema sou eu?
Como eu poderia ter problema com uma garota que agia com a meiguice incorporada na alma? Inocentemente preocupada, ela me encarava. As pequenas bolas dos olhos pretos da namorada do meu melhor amigo me penalizavam os sentidos. Não era pena que eu sentia. Era uma atração insana, incompressível. Sem pedir permissão, peguei-a com firmeza pelas costas e trouxe seu rosto para o meu. Sua boca para a minha.
A suavidade que Luso sentia eu pude sentir. Kauanne ainda tentou me empurrar, mas eu a segurei com mais força e ela desistiu. Minhas mãos tocaram o cabelo macio e o trouxe para junto de mim. Nosso beijo pausou pelo mínimo instante que me censurei por beijar a namorada de meu melhor amigo. Ela teve a chance de me soltar, mas não o fez. Foi uma permissão. Meus lábios voltaram a se enroscar nos lábios dela com o peso zero de consciência. O mesmo gosto, o mesmo tesão que Luso sentia eu também sentia ao envolver o corpo de Kauanne no meu. O suor dela, depois de ter caminhado pelo sol escaldante, desaguou nas minhas águas corpóreas. Era errado? Era. Porém, que mal havia? As consequências são só consequências. 
O juízo, por fim, me puxou as orelhas. Soltei-a e a olhei nos olhos. Olhos nos olhos. O arrependimento alagou minhas veias sem secar. Os meus lábios ainda molhavam de vontade de sentir os lábios de Kauanne de novo, mas eu seria forte o suficiente e iria resistir. A traição já tinha acontecido e eu me decepcionei com a minha atitude. Luso não merecia um amigo como eu, e nem uma namorada como Kauanne. Ninguém merecia.
- Não era pra eu ter feito isso. Não era pra eu ter feito isso... – eu repetia. Segura si, Kauanne pedia calma.
- Era isso que você queria não, era?
- Era... Quero dizer... Não.
- Era. Eu percebi desde que nos conhecemos.
- Você...
- Sim. Eu sou mulher. E mulher é muito mais atenta que vocês. 
- Pode ser... Mas...
- Eu matei a sua vontade. Mas fique despreocupado, Plínio.
- Como eu vou ficar despreocupado? Eu beijei a namorada do meu melhor amigo. Eu, eu... Isso não é coisa que se faça. Ele precisa saber. E ele vai me matar!
- A gente vai terminar, Plínio. Eu vou terminar com o Luso. – anunciou, serena e eu fiquei alarmado. Luso, que não era a favor de violência, não se controlaria em me arrancar uns dentes.
- O quê? Se você fizer isso ele vai me esganar! Me trucidar! Ele vai dizer que roubei a namorada dele! Por que eu fui gostar de você? Por quê?
- Ei, calma! Calma! – Kauanne pedia, me levando até a cama. Afastei-me dela, arrependido pelo beijo. Ainda não inventaram um método de voltar no tempo, infelizmente, senão eu já o teria feito e... E nada. Eu a teria beijado do mesmo jeito porque eu estava louco pra fazer isso. Se eu pudesse voltaria no tempo para beijá-la outra vez.
Num rompante de loucura, gritei:
- SAI DAQUI.
- Ham?
- Sai daqui, Kauanne! Saia da minha casa! – expulsei-a.
- Por que você está me expulsando?! – perguntou, revoltada.
- Porque eu ainda quero te beijar e sei que isso é errado, então...
Sem aviso prévio, Kauane me beijou outra vez. Ela e eu não merecíamos o perdão de Luso, mas se já havíamos nos beijado, qual seria o problema em repetir? Kauanne me jogou na cama, sem me soltar os lábios e se lançou por cima de mim. A minha camisa suada foi retirada e arremessada para cima da cômoda. Aquilo era insano. De forma alguma poderia acontecer. Mas iria acontecer. Estava acontecendo. 
- Luso não precisa saber disso, Plínio.
- Mas eu vou contar a ele, Kau. Não é justo, não é...
Minha boca se calou com outro beijo. Ela foi mais forte: eu não iria contar nada do que aconteceria. Nada. Até porque não aconteceu nada. Graças a minha tia, que abriu a porta sem nenhuma discrição. Kauanne saiu de cima de mim de imediato. Ela ficou branca. Bege. Azul. Ficou colorida. Tia Dália simplesmente ordenou: “Saia”. E a namorada do meu melhor amigo saiu, sem olhar pra trás.
- Eu só não te dou uma surra porque não sou sua mãe, mas a minha vontade é essa, Plínio. Trair seu melhor amigo? Por pouco vocês não transam!
Eu merecia ouvir. Merecia.
- Estou decepcionada, Plínio.
- Eu também, tia. Eu também.

De castigo, titia me obrigou a fazer todo o serviço de casa por uma semana, ainda que Luso me perdoasse. Mas para que ele me perdoasse ou não eu teria que chamá-lo para conversar, eu não tinha coragem para isso. Não tinha vergonha na cara. Meu arrependimento só não era maior que a minha vergonha. Eu destruí uma amizade de anos por causa de uma garota. Eu não era melhor amigo dele, nem de ninguém.
Terminei de secar a louça e meu celular tocou. Era Luso. Ainda não era tão tarde da noite. Faltava pouco para às onze. Atendi o aparelho, trêmulo. “Vem aqui em casa. Precisamos conversar”. Desligou. Kauanne contou tudo. Aquela era uma noite que eu apagaria da minha memória, porém não havia como fugir. Fui homem o suficiente para beijar a namorada do meu melhor amigo, então tinha que ser homem o suficiente para pedir desculpas a ele. Ou levar um merecido soco na cara.
- Boa sorte, seu traíra. – desejou-me minha tia.
Meus pés caminhavam lentamente em direção à casa de Luso. Poderia trovejar ou chover ácido no meio do caminho para me impedir de chegar até ele. Coragem. Eu tinha que ter coragem. E ser honesto, já que a burrice foi feita. Logo que me viu, Luso, sentado no chão da calçada, apontou para o lado para eu sentar. Encostei meu traseiro no chão e ele começou:
- Kaunne terminou o namoro.
Silêncio.
- E você sabe por quê?
Silêncio.
Luso suspirou tristemente.
- Você lembra que eu disse, na noite que os apresentei, que ela queria esquecer o último namoro? E que eu a ajudaria a esquecer? – eu assenti – Pois é. Mas não consegui. Kauanne ainda gosta do ex. Os dois se encontraram hoje mesmo e ela preferiu terminar comigo. Achou que não seria justo. – contou, mordendo os lábios para não chorar. Porém, meu amigo foi mais forte. Bagunçou os cabelos, levantou-se e sorriu: - Mas fazer o quê? Ficar chorando, mais do que eu chorei hoje à tarde não adianta. – e soltou uma risada.
Levantei-me, fiquei bem em frente a ele, que sorria idiotamente. E, com o coração amedrontado, perguntei:
- O que você faria se eu te disser que beijei sua namorada?
Luso riu de novo e respondeu, como se tivesse escutado a maior babaquice:
- Eu não acreditaria.
- Mas é verdade. Eu estou falando sério. Luso, eu fiquei a fim da Kauanne desde que a conheci, por isso eu evitei tanto de sair com vocês. Eu fiquei fascinado por ela. E hoje à tarde ela foi lá em casa e... Nem sei o que ela foi fazer lá...
- Eu pedi pra que Kauanne fosse lá com você, já que ela iria passar lá na sua rua e você estava nos evitando. E vocês pareciam ter se dado bem.
- Nos demos bem... Cara, eu não resisti e a beijei. Nós nos beijamos. Várias vezes. Ela disse que já tinha desconfiado que eu estava fim dela e...
- Você está falando sério?
- Estou, cara. Estou. Mas, Luso, eu não sei como isso aconteceu, cara...
Fui atingido por um murro pesado e congelante no rosto. Caí no chão frio da calçada, com a cabeça inteira dolorida e sentindo um inchaço próximo ao meu olho. Uma mulher que passeava com um cachorrinho nos olhou desconfiada e voltou a andar. Luso, bravo, me estendeu as mãos e me levantou. Furioso, admitiu:
- Kauanne disse que ela o beijou e você foi pego de surpresa. Eu só queria saber se você iria me contar, mas não esperava que a versão fosse diferente.
- Luso...
- Mas ela terminou porque, de fato, ainda prefere o ex-namorado. Pensou que fosse conseguir esquecê-lo estando comigo, mas depois do que vocês fizeram... Preferiu acabar de vez com o namoro. 
- Luso, vou entender se você não quiser mais nem olhar na minha cara. Eu fui um covarde, sacana, traidor...
Impaciente, cruzou os braços e, aborrecido, disse:
- Você é realmente tudo isso, Plínio. Tô puto da vida com você. Mas... Vou te perdoar. – com um sorriso tímido, admitiu: - Sou meio idiota quando se trata de garotas, e sou muito mais idiota quando se trata de amigos. Eu deixo passar dessa vez. Mas só dessa vez. Porque você foi honesto comigo e porque eu também acho que, depois de chorar um bocado e pensar bastante sobre esse namoro, acho que me empolguei. – e estendeu minha mão, puxando-me para um abraço.
- Mas ainda tem uma coisa, Plínio.
- O quê?
Luso me soltou e eu ganhei outro soco. A dor foi maior e eu pude sentir uma gota de sangue caindo no chão da calçada.
- Você sabe que mereceu, não sabe? – inquiriu, verificando o machucado.
- Sei. Aí! – gritei.
- Vamos entrar na minha casa pra eu dar um jeito nesse seu rosto feio. – e me acompanhou até a porta, segurando-me no ombro. – Agora... Pode dizer... - tentando conter o riso - A Kauanne beija bem pra caramba, não é? - querendo rir.
Espantei-me com a pergunta de Luso, mas nossa amizade permitia essas intimidades e comprovava que ele não levou tão a sério. Ele era um namorador. A fossa causada pelo término sarou sem tantas feridas. 
- Beija. Beija bem caramba, cara. Mas... Pra você me perguntar isso...
Nós entramos na casa dele, que logo recebeu pingos de sangue, e Luso, cinicamente, perguntou:
- Você lembra da Susan? Aquela garota que você era apaixonado, mas nunca teve coragem pra se declarar?
- Lembro. Por quê?
Luso não conseguiu responder. Ele simplesmente ria, ria descontroladamente.


- Então... Acho que agora estamos quites. Porque... A Susan e eu... Nós ficamos uma vez, mas preferi não te contar. – e riu ainda mais. Uma risada alta e depravada. Meu amigo não era nenhum santo. Eu também não. E Kauanne... Kauanne... Eu ainda sentia os lábios dela nos meus. Pena que ela era ex-namorada do meu melhor amigo... Mas ex... É ex. E ela ainda gostava do ex-namorado dela. Eu teria que procurar alguém que não tivesse ninguém. Mas não seria fácil. Era só eu fechar os olhos que vinha Kauanne... Isso que dá: gostar da namorada do melhor amigo. 



Comentários

Wow, passo um tempo longe daqui e ia perdendo um dos melhores contos que vc já publicou.
Na verdade, esse pode ser considerado o melhor.
Gostei bastante dos personagens, a linha narrativa é coesa objetiva...
As músicas cairam como uma luva com o tema hehehe - não podia ser diferente.
Esse tema já foi mt cantado na cultura popular, pois é algo exatamente assim: popular.
Inclusive é algo que quase fiz na época de ensino médio, mas definitivamente não faria hoje em dia.
Nem preciso falar da sua escrita, que se aperfeiçoou de tal forma que dá gosto de ler.
Sem pedantismos ou vícios de escrita (ex: debalde heheehe).
Parabéns, Victor.
Abração, desculpa minha ausência.
Unknown disse…
Simplesmente ma ra vi lho soooooo!!!
Da gosto de ler. Vc começa e não quer mais parar. Sensacional mesmo
Rafael Vanderlei disse…
MUITO BOM!!!!!

Mais uma vez vc me prendeu na história como nunca!!!!

Me vi la!!!!

vlw Victor por mais essa!!!!

Quero mais!!!!!abração!!!!!
Cris Freitas disse…
Que roubada essa que o Plínio se meteu... História devassa, cheia de desejos proibidos e ao mesmo tempo deliciosa de se ler. Tá certo que Plínio pisou na bola feio com Luso, foi se apaixonar justo pela sua namorada, e Kauanne não tem nada de santa kkkkkkkk.. Enfim, eu poderia ficar aqui por horas adjetivando essa doce e proibida aventura de amar alguém que não se deve, mas vou finalizar com a canção (Amado)composta por Marcelo Jeneci, maravilhosamente interpretada por Vanessa da Mata: "Como pode ser gostar de alguém
E esse tal alguém não ser seu..."

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