Conto: O ex-casal

arte: Henrique Oliver
Esse conto foi inspirado na canção "Medo de amar nº 3", de Péricles Cavalcanti, gravada por Adriana Calcanhotto.

Eles mal se divorciaram e já iniciavam uma terceira discussão. O próprio filho deles, Luca, não aguentava mais tanta briga e decidiu deixar os pais sozinhos, indo à casa de um amigo. Na verdade, o ex- casal passou a discutir ainda mais após a separação. Era como se gostassem de brigar. Ou se tivessem tesão nisso. Para Saulo, o sentimento poderia ser raiva ou ódio, o certo é que sentiam algo. Afinal, amor e ódio moram juntos dividindo o mesmo coração. Só não se sabia se era o caso de Rian e Bárbara, os pais de Luca.
– Quer saber de uma coisa? Esquece! Não sei por que ainda perco meu tempo com você, Bárbara! – gritou Rian.
- Pois bem, você quer mesmo que eu continue, Rian? Tem certeza?
- Já falei que sim, Bárbara! Eu preciso entender o porquê de toda vez que eu tento uma simples conversa com você eu levo...
- Leva o quê? Uma patada? É isso? – perguntou, irônica.
- É, é isso mesmo. – disse, ingênuo.
- Ora, Rian, não se faça de inocente! Nesses dezessete anos de casamento, em pelo menos quinze você agia como um bruto! Só me tratava na grosseria, dizia que eu te traía e vivia me acusando de outras idiotices. E agora você quer se fazer de coitado? Não comigo, Rian!
- Tudo bem, eu não era a pessoa mais delicada do mundo, Bárbara. Mas...
- Delicada? - incrédula pelo uso da palavra. Poderia se ouvir a risada sarcástica do outro lado da rua. – Tenha certeza que – e fez um gesto com dedos para cima que sugeriu aspas – delicadeza nunca foi o seu forte.
- Eu concordo. Mas agora há pouco você me chamou de vadio, Bárbara! Você diz que eu sou bruto e ainda me chama de vadio? Como assim?
- Como assim?! Você deve estar de sacanagem, não é? – Bárbara respirou fundo e continuou – Rian, me diga: qual a sua atual profissão?
- Minha atual profissão? Ah... – gaguejou. – Eu... Você sabe, sou fotógrafo.
- Sim, é fotógrafo. Há quanto tempo?
- Há um... Um mês.
- E qual foi o seu último emprego antes de trabalhar como fotógrafo? – Bárbara perguntava como se fosse uma professora de alfabetização ao aluninho levado.
- Por que você tá perguntando? Você sabe que eu fui garçom.
- Por quanto tempo mesmo você foi garçom, Rian? – perguntou, esperando ansiosamente a resposta.
- Dois meses...
- Está vendo?! Você dura dois meses num emprego, mal paga a pensão do Luca e não quer que eu te...
- Pensão? Que pensão? – perguntou, surpreso.
- Rian, você me assusta. – disse Bárbara, franca.
- Ah, Bárbara, mesmo assim ainda acho que a gente poderia se dar bem. Não vejo motivo para tanto desprezo. – tentou argumentar, fugindo propositalmente do assunto da pensão. – Você me acusa de tanta coisa sem julgamento. Por exemplo, até hoje você evita ficar ao meu lado porque diz que eu me comporto mal. Quando eu me comportei mal?
- Quando? Você fala alto, arrota à mesa, coça o saco, é inconveniente, canta minhas as amigas casadas... Quer mais?
- Ah isso é... – sem saber o que dizer.
- Isso é uma tremenda cara de pau!
- Ah, quer saber? Vou embora. Tô atrasado pra ir à missa...
- Missa?! – Bárbara gritou aos risos. – E você sabe rezar? Quando éramos casados você errava o “Ave Maria”!
- Para a sua informação, é a missa de formatura de um amigo e... Ah, você é muito chata. Se eu vou à missa reclama, se eu não vou, reclama também!
- Ah, me poupe, Rian! – disse, passando a mão no cabelo, despreocupada.
- Você diz que eu nunca rezo, me xinga... Você conta umas mentiras, sabia?
- Não foi xingamento. – corrigiu, com eloquência.
- Ah, mas disse que eu arroto, que eu coço o saco...
- Mas é verdade. E outra: quais mentiras eu contei? – perguntou Bárbara, como se tivesse sido acusada de um crime.
- Olha, você vive dizendo que eu te envergonho e isso não é verdade. É quase uma blasfêmia.
- Por favor, Rian! Você não nem sabe o que é uma blasfêmia. – retorquiu, impaciente. – Eu devia lhe dar um dicionário de presente. Mesmo porque, você me envergonha mesmo.
- Você é cruel comigo, Bárbara. – Rian, cabisbaixo. Bárbara sabia que ele estava se fazendo de coitado.
- Ah, lá vem você com a cara de santo de novo.
- Não é cara de santo...
- E você diz que sou cruel? Cruel é você... Aliás, não sei como fui casada tanto tempo com demente que nem você...
- Quer saber de uma coisa, Bárbara? Você me xinga disso, daquilo, de bilhões de coisas; me chama de demente, que eu não rezo, que eu sou mal educado, que não tenho salvação, mas quer saber de uma coisa?
- Você tá pondo palavras na minha boca. – nem tudo ali Bárbara falou, mas, sim, pensou.
- Quer saber de uma coisa?
- Diz logo! Para de enrolar! Cheguei morta de cansada do trabalho e...
- Você quer saber a verdade? – Rian se aproximou dela, com um olhar sedutor que Bárbara conhecia bem. – Você sente a minha falta e tem medo de admitir. Você sente falta dos meus defeitos.
- Tá louco? – ela tentava se soltar, mas Rian já a pegava pelo braço.
- Não, acho que você é quem tem medo de admitir muita coisa. Acho, só por tudo que você disse agora, que você tem medo é do amor que sente por mim.
- Você só pode tá... – Bárbara tentava se desvencilhar, sem muito esforço.
- Você tem medo do amor que você guardou esse tempo todo, porque – com os lábios quase encostados aos dela. Bárbara parecia inebriada. – você ainda me ama, mesmo com esses tantos defeitos que você listou. Você me ama porque...
Sem dar a chance de Rian terminar, Bárbara o beijou. E como se nunca o tivesse beijado antes. Quase sufocante. 
- Eu disse... – Rian começou, mas Bárbara o calou com outro beijo.

Bárbara, enfim, acordou. Teve uns sonhos esquisitos. E se assustou com Rian deitado ao seu lado, acariciando seus longos cabelos cacheados, melados de suor. Bárbara se afastou com rispidez. O ex- marido apenas riu. Com um sorriso triunfante, Rian comentou:
- Eu sabia que você ainda gostava de mim.
- Quem disse que eu ainda gosto de você? - perguntou, fingindo indiferença.
- Pelo que nós acabamos de fazer...
- Querido, você está tão carente de razão que está tentando encontrar argumentos para se defender, mas não consegue. – debochou Bárbara.
- Mas você bem que gostou.

- Você ainda é um bruto, demente e sem noção! Mas, sim... – admitiu, com um leve sorriso no rosto. – Eu gostei. – sussurrou no ouvido de Rian. E o (ex) casal repetiu a dose.


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