Conto: O lar

Esse conto foi brevemente inspirado na canção "Tudo que vai", da banda Capital Inicial.

Controle. De início, eu tinha de manter o máximo de controle possível. Sobretudo para abrir a porta. A escuridão, naquela madrugada, me acompanhava por completo e me impedia de ver tudo ao meu redor. Mas eu sentia o pequeno chaveiro em minhas mãos e isso para mim já valia bastante. Peguei meu celular e toquei na tela para que ele iluminasse e facilitasse minha visão. Apesar da luz fraca, enxerguei; enfiei a chave maior no trinco da maçaneta e a girei. Abri a porta com facilidade, mas com lentidão.
 Entrei na casa, finalmente. Estava, assim como do lado de fora, um breu. Tateei a parede ao lado da porta, procurando o interruptor e logo o encontrei. Era óbvio que eu o encontraria, eu sabia exatamente onde estava. Ainda continuava no lugar de sempre. Acendi a lâmpada e só não levei um susto com o que vi porque já estive ali dois dias antes, mas eu ainda não havia me acostumado. 
A sala não era a mesma de dez anos atrás. Num estalo, eu que estava com a memória fraquíssima naqueles meses, lembrei-me de tudo. Eu fechava meus olhos e encontrava os sofás listrados, ambos encostados nas paredes e um ao lado do outro. Eu fechava os olhos e ainda via os mesmos quadros de pinturas antigas; ainda com os olhos fechados, eu observava a estante, com duas prateleiras de livros velhos e novos, uma televisão antiga, o telefone fixo azulado, os álbuns de fotografias na parte de baixo, os vários porta-retratos com outras fotografias e objetos herdados de meus avós. Imagens de lembranças que voltaram como mágica, era uma mistura com tudo o que sobrou de tantas recordações e de lapsos de realidade. De sonho e de realidade.
Contudo, ao abrir os olhos tudo isso sumia sem deixar vestígios. Eu enxergava um único sofá vermelho, uma mesa de vidro com um notebook, uma pilha de papeis ao lado dele e objetos estranhos e uma cadeira de rodinhas. A mesinha era preta e a cadeira que a acompanhava era vermelha. Havia uma estante, como outrora, porém com livros grossos de medicina a ocupando, além de uma impressora multifuncional. Aquela não era mais a minha casa. Era como se estivesse vazia. Não foi o suficiente terem estragado com toda a minha sala, ainda fizeram uma obra na entrada, destruindo meu jardim para dar lugar a um estacionamento. Essa mesma obra também retirou a varanda. Já não bastasse isso, o interior da casa era outro, definitivamente. Sem contar a calmaria. Eu quase podia tocar o silêncio, de tão presente que era. Antigamente, o furdunço era vivo. Mas agora pairava um clima fúnebre. Era pior que um pesadelo.
Só de lembrar a reforma no meu jardim e ao ver a sala toda modificada me dava nos nervosos. Se fosse possível, eu quebraria o maldito computador e destroçaria o tal sofá vermelho. Ainda havia dois corredores: um me levaria à cozinha e o outro ao meu antigo quarto. Porém nenhum dos dois cômodos existia mais. A minha antiga casa tornara-se um consultório médico e eu estava na recepção. Depois que eu me mudei, o local passou a ser um comércio, e em seguida um ateliê. Ou seja, não era mais uma casa. Não era mais a minha casa. Literalmente não, apenas na minha cabeça. Nos meus sonhos, para ser mais exato. E era por eles que eu estava ali e eram eles que me faziam lembrar o meu lar com mais precisão. Porque, normalmente eu já nem lembrava mais.
Havia exatos dez anos que eu morava em outra cidade, e ainda assim aquela casa ficara impregnada em minhas lembranças por um longo período, e principalmente nos meus sonhos. A minha antiga residência jamais saiu de minha memória e habitava o meu sono com frequência. Quando eu não sonhava que estava voando ou que era algum tipo de animal, eu estava naquela casa. A saudade era muito maior do que eu imaginava, prova disso é que o número 1295, na Travessa Dos Alves não saia do meu inconsciente. Para matar a meu desejo só visitando novamente, e por aquela rua eu não colocara os pés desde que me mudei. Ou melhor dizendo, eu não colocara meus pés havia somente dois dias, quando a médica e proprietária do estabelecimento - que um dia já foi minha morada - permitiu que eu visitasse meu antigo lar. Mas, por motivos fúteis, me expulsou em questão de minutos, e eu nem sequer entrei no cômodo que um dia foi meu quarto. Era uma questão de necessidade entrar nele, já que, aos poucos eu tinha dificuldade em me lembrar do tempo que passei naquela casa, mesmo que guardasse muitas fotografias comigo. Somente nos meus sonhos a memória era mais vívida. E em praticamente todos os meus sonhos eu terminava tentando entrar no meu quarto. Porém algo dava errado e eu acordava. Ou eu simplesmente não entrava.
Virei-me assustado para a porta. Alguém a abrira. Era a médica e proprietária, e agora, dona da minha casa.
- Sr. Gregório, como o senhor conseguiu a chave do meu escritório? – ela perguntou, calmamente, de braços cruzados, com um chaveiro em mãos. Era uma senhora na faixa dos cinquenta anos, sisuda e independente.
- Dra. Marli, como a senhora soube que eu estava aqui? A senhora está sozinha? – eu temia que ela estivesse escoltada por algum policial.
- Como o senhor conseguiu a minha chave? – repetiu, com mais firmeza.
- Eu furtei da bolsa da sua secretária.
- Era de se esperar. Quando você fez isso? – num tom como em quem já soubesse a resposta.
- A senhora sabe, dra. Marli. Foi quando vim aqui, há dois dias.
- Muito bem. - disse, esticando um dos braços e abrindo a mão. Tive que entregar o chaveiro. - Você veio aqui há dois dias, quando lhe mostrei o local. Então me diga, o que você está fazendo no meu consultório em plena madrugada? – ela, enfim, trancou a porta e jogou os chaveiros na mesa de vidro.
- Aquele dia não foi o suficiente para visitar...
- A sua antiga casa?
- Sim. A minha antiga casa. – corroborei, tentando sorrir. – A senhora não me deixou entrar no meu... Quarto. – concluiu, mas logo me calei. A médica, então, andou em minha direção e disse, cautelosamente:
- Senhor Gregório, muita coisa mudou desde que você se mudou dessa cidade e, principalmente, dessa casa. Uma delas é que ela não é mais uma casa e não é mais sua, e há muito tempo. Outra mudança é que eu instalei duas câmeras de segurança: uma na entrada e a outra aqui em cima. – ela apontou para uma pequena câmera preta que estava pendurada no teto – O senhor, devo admitir, teve sorte de que o alarme que toca quando alguém a invade está com defeito, mas o alarme também dispara em minha casa e esse está em perfeitas condições.
- Que sorte a minha, não é? – eu estava nervoso com a calma da médica. Como eu não percebi a maldita câmera?
- Eu não vim sozinha. Há dois policias lá fora. – informou, ainda com tranquilidade. – Mas eu prometo não fazer nada e não lhe denunciar se o senhor me responder: qual é o seu problema? – enfatizando na última palavra, ainda com uma estranha paciência.
- Meu problema?
- O senhor veio aqui e me pediu para visitar o meu escritório porque estava com saudade de sua cantiga casa, onde você passou a sua infância toda. Eu deixei e o teria deixado entrar nos outros cômodos se você não tivesse sido inconveniente demais ao ponto de incomodar todos os meus pacientes com essa história de querer entrar no seu ex quarto. E agora, em plena madrugada, o senhor aparece aqui para quê? Com certeza, não é uma simples nostalgia. O senhor tem algum distúrbio.
- Não é distúrbio nenhum. Eu... Eu precisava vir aqui, passar mais tempo, me sentir em casa de novo. De uns tempos pra cá eu pouco lembro dos dias em que vivi aqui. Essas lembranças voltam apenas nos meus sonhos. Não sei por que isso vem acontecendo. E agora, nesse momento, essas lembranças estão retornando. Como num estalo. Como nos meus sonhos. – tentei me explicar, mesmo parecendo pouco convincente e nada coerente.
- Sonhos? Você está doente, é isso que eu acho.
- Por favor, deixe-me entrar nos outros cômodos da casa. No meu antigo quarto, por favor. – ajoelhei-me para ela. Talvez assim ela permitisse.
- Levante-se daí. Levante-se! – agora sem paciência, ela mesma me levantou, à força. – Olhe aqui, você roubou a chave da minha secretária e invadiu meu consultório de madrugada, não foi? Agora chega, vá embora, antes que eu desista e o denuncie...
- Não! Por favor. Eu quero ficar aqui! – gritei e corri até o corredor à direita, em direção ao local onde, por anos, fora meu quarto. Debalde, tentei abrir a porta. Bati-a com murros, mas nada. Estava trancada. A médica já com os dois policiais ao lado, apareceu. Ajoelhei-me de novo.
- Levante-se, eu já disse... – começava dra. Marli. Mas a interrompi, agarrado às pernas dela.
- Me deixe entrar no meu quarto. Por favor! – eu estava desesperado.
- Senhor, este não é mais o seu quarto. Aceite isso! – ela tentava me explicar, enquanto os policiais me levantavam, com violência. – Não o machuquem. – ordenou.
- Obrigado. Agora, abra aqui. Eu lhe peço. – eu implorava.
- Não vai adiantar eu abrir. Aí há apenas uma maca e meus aparelhos...
- POR FAVOR! – eu berrava. – Aqui é o meu quarto. Ele ainda está nos meus sonhos o tempo todo. - eu explicava, trêmulo. - Em todos os meus sonhos eu estou nele, nessa casa, nessa cidade. Eu posso ter crescido, já tenho mais de quarenta anos, posso ter ido embora daqui, mas eu nunca saí daqui de verdade. Eu preciso entrar no meu quarto outra vez. Sentar na minha cama, abrir meu armário, ligar meu...
- Mas eu já disse: não há mais nada seu aí. Há anos. – a médica insistia, com piedade. – Não adianta nada eu abrir. Tudo o que esteve aqui um dia não está mais. Já foi e muito anos antes de eu me comprar o terreno. Já foi. Acabou. É passado.
- Não. É presente. Pra mim, ainda é presente, dra. Marli.
- Pra você! PRA VOCÊ!
- Senhora, deixe que nós o levemos à delegacia. – sugeriu um dos policiais. Ela assentiu, mas eu gritei:
- NÃO! Nesse quarto... – eu dizia, nervoso – Nesse quarto está a minha vida. A minha vida de quando eu era garotinho, adolescente. Tudo o que eu vivi está aí. Se eu entrar agora, tudo vai voltar a ser como antes. Tudo. E eu vou voltar pra essa casa, pra minha vida de antes e tudo... Tudo... Tudo voltará a ser como era antes, e eu serei feliz de novo, como acontece nos meus sonhos. Nos meus sonhos!
- Nos seus sonhos? – a médica perguntou, curiosa.
- Sim. Em praticamente todos os sonhos que tenho, mesmo que seja com pessoas que conheci recentemente, eu estou sempre nessa casa. Sempre nessa casa! Nunca me vi no meu apartamento, somente aqui. Mas ultimamente meus sonhos tem sido outros e tão perturbadores que estou para ficar maluco!
- Você já está maluco. – julgou-me um dos policiais. O outro o reprovou com o olhar e pediu para eu continuar a falar.
- Esses foram meus últimos sonhos: eu entrava nesse consultório, mas aos poucos ele voltava a ser a minha casa, com tudo o que havia nela. Daí, algum motivo me leva até a porta do meu quarto. Eu tentava abrir e...
- Não vai me dizer que você acordava? – perguntou o policial que pedira para que eu continuasse a falar, atento.
- Tudo ficava escuro e sim, eu acordava. – respondi e ele riu. – Eu preciso entrar no meu quarto pra saber o que vai acontecer, embora eu tenha certeza do que há aí dentro e do que vai acontecer. Era essa a sensação que tinha ao acordar: que eu tinha de entrar no meu quarto. E eu não quero esquecer outra vez de tudo o que passei aqui. Eu sei que eu entrar nesse quarto muita coisa vai mudar em mim. Eu preciso entrar!
A dra. Marli me olhou com reprovação e impaciência, além de soltar um longo bocejo. Para a minha surpresa e alívio, ela disse:
- Muito bem, eu vou abrir esta merda de porta. – e eu a abracei, mas ela em empurrou. Um dos policias mandou ao outro:
- Vamos embora daqui.
- Não. – discordou o outro. - Nós vamos ficar. Temos que ficar aqui.
- Deixa de bobagem. Não tem nada de mais aí dentro. Aqui é onde a médica atende aos pacientes dela. – discordou o policial.

- Ele tá certo. – a médica concordou - Mas vocês vão ficar, pra eu acabar logo com isso. Não quero ficar aqui sozinha come esse maluco. – rezingou a médica.
- Dra., eu não sou maluco. – insisti. – Há algo aqui nesse quarto.  Eu posso sentir. – e ela, incrédula, foi até a mesa da sala e voltou com o chaveiro. Escolheu uma das chaves e pôs na fechadura. Apressada, a médica destrancou e abriu a porta. Seus olhos se arregalaram, como se fossem sair do lugar. Ela respirou fundo e passou as mãos no cabelo. Os policiais nem piscavam. 
Eu avisei.
                  - Então, agora acreditam em mim? – inquiri. Mas a médica nada respondeu. Ela estava estática, muda. Não esboçava reação alguma. Os policiais pareciam ter entrado em transe. – Como eu imaginei. – comentei. Dei dois passos a frente e entrei. A porta se fechou sozinha, num baque. E eu já tinha mais a companhia dos policiais e da médica. Nem da escuridão. Eu estava na minha casa.

                    Minha.


Comentários

Anônimo disse…
Essa história vai ter continuação...? Porque já tô aqui esperando... rsrsrs... É como se eu tivesse enxergando os personagens, assistindo tudo de perto, dentro da história...
Cris Acioli

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