Conto: Um namoro incomum (?)

O conto de hoje foi inspirado na canção "Alguém como você", gravada (e composta) por George Israel e pela ex-dupla Sandy e Junior. (Acompanhe a letra aqui)


Apenas dez meses de namoro e se dependesse de meu pai, Stênio e eu já estaríamos casados e com uns cinco filhos. Raramente se vê isso: o pai da garota rapidamente se afeiçoa ao namorado da filha. Stênio e eu alcançamos a maioridade havia pouco tempo, ainda éramos estudantes universitários; ele na veterinária e eu em publicidade e propaganda, ambos na mesma instituição pública, mas ainda dependíamos financeiramente dos nossos pais. Ou seja, casamento estava fora de questão, e o motivo nem era esse. Nós sabíamos que nosso namoro tinha prazo de validade, eu só não podia imaginar que ele terminaria tão cedo.
Naquela tarde de sábado, festejávamos na casa dos meus avós, Nívea e Valter, o aniversário de 70 anos da minha avó, ao lado da maior parte dos nossos familiares. Papai e vovô receberam Stênio com um filho. Meu namorado me deu um selinho e, discretamente, disse no meu ouvido:
- Preciso falar com você. Agora.
- O que houve?
- Chegou a hora, Gabrielle. – Stênio me respondeu, austero. A expressão “chegou a hora” significava o fim do nosso namoro. Avisamos aos meus pais que iríamos subir para o meu quarto e concordaram sem hesitar. Minhas amigas reclamavam que elas não poderiam ficar sozinhas no quarto com o namorado. Stênio ganhou a confiança da minha família logo ao se conhecerem. Ele realmente cativava qualquer um com facilidade. Mas muito daquilo era fingimento nosso.
Antes de subirmos, mamãe e vovó apareceram e puxaram Stênio para um abraço. Mimado ao extremo.
- Tia Helô, - Stênio falava com minha mãe – Heline está vindo pra cá. Ela pode subir assim que chegar, tá legal?
- Tudo bem, filho. – mamãe concordou amavelmente.
- Depois venha almoçar. – chamou vovó. – Fiz a lasanha que você tanto gosta.
- Obrigado, dona Nívea. – agradeceu Stênio, embaraçado. - Quase me esqueci. Feliz aniversário pra senhora. – desejou, num abraço.
Alan parabenizou minha avó e entregou a ela um pequeno embrulho de presente. Subimos para esperar Heline, minha melhor amiga desde os tempos do Ensino Médio. Ela se comunicou com Stênio e não comigo, algo incomum. Normalmente, Heline me telefonava antes de ir à minha casa ou aparecia de surpresa. Naqueles últimos dias, no entanto, ela estava distante. Eu tinha um péssimo pressentimento.
No calor do meu quarto, Stênio se ventilava com a própria camisa, exibindo sua barriga morena, lisa e esbelta. Além do tanquinho, as pernas grossas também chamavam atenção. Minhas primas e amigas não se vergonhavam em dizer o quão me invejavam pelo namorado que eu tinha. “Ele é bom de cama, não é?” ou “O documento dele é grande?” eram perguntas frequentes e as minhas respostas eram todas positivas, embora ele e eu nunca tivéssemos transado uma vez sequer. O máximo de intimidade que já tivemos foi de um ver o outro seminu ou de trocar uns bons beijos. Nada mais.
Abri a janela, já que meu ar-condicionado estava quebrado, deite-me na cama ao lado de Stênio, que informou:
- Jade me pediu em namoro. E eu aceitei.
- Como é que é? Você aceitou sem antes me consultar?! – inquiri, exasperada.
- Não resisti, Bielle. Fui pego se surpresa. Você sempre soube da minha paixão por ela. E sempre soube também que nós estávamos nos encontrando.
- Não. Eu não sabia que vocês estavam se encontrando. – levantei-me da cama e fiquei dando voltas, pensativa. – E agora pra todos os efeitos, eu levei um chifre, não é?
- Acho que sim. – Stênio fingiu um sorriso.
- Heline já sabe, então?
- Já. – respondeu, olhando para o céu nublado pela janela do quarto.
- E o que ela achou disso tudo? Odiou, não foi?
- Cê vai ficar sabendo quando ela chegar. - respondeu, com um ar de mistério.
Naquele instante, papai entrou no quarto com duas garrafas de cerveja.
- Muito obrigado, tio Ítalo. – Stênio pegou as garrafas. Papai comentou:
- O clima aqui tá meio pesado.
- Tá tudo bem, pai. – menti.
- Certo... Se precisarem de mim, estarei lá em baixo. Vou deixá-los sozinhos. – e piscou para mim, saindo do quarto. Secamos as duas garrafas quase que num só gole. Heline não chegava. Estávamos ansiosos. Desde que papai saiu não trocamos uma única palavra, nem nos olhávamos. Esse dia chegaria cedo ou mais tarde. Eu também já achava que... Estava na hora. Estava na hora de assumirmos. “Assumir” nem é a palavra. Quem assume algo é como se estivesse cometendo um crime ou escondendo algo gravíssimo.
Heline bateu à porta e entrou no quarto, trancando-a, em seguida. Ela sorriu para Stênio, abraçou-me e me beijou nos lábios. Um beijo de quem não se encontrava havia menos de uma semana, mas era como se fossem meses. Heline engordara um pouco naqueles últimos dias, e, pra mim, essas gordurinhas eram seu charme. Carinhosamente, afastei seus cabelos loiros e curtos das orelhas e a beijei mais uma vez.
Meus cabelos longos e pretos eram as partes do meu corpo que Heline mais gostava, ou uma delas. Ela se surpreendia com o cuidado que eu tinha com eles e com meu corpo de modo geral. Agoniada, Heline se julgava por estar mais gorda e eu mais magra, mas isso não era um defeito. Eu era apaixonada por ela. Ser apaixonada por uma garota fazia de mim uma lésbica? Pode ser. Já fiquei com outras garotas antes dela e com o próprio Stênio, que se tornou meu melhor amigo. Então eu era bissexual? Pode ser. Não sei. Apaixonei-me pela pessoa que Heline era, e com tudo o que vinha no conjunto, não pelo fato de ela ser mulher. O ser humano tem a mania besta de rotular tudo, e nem sempre é necessário. Isso me dava nos nervos.
Heline me soltou e abraçou Stênio. Nós nos sentamos ao lado dele e nos olhamos por uns segundos. Heline finalmente quebrou o silêncio:
- Pois é... Acho que o nosso namoro termina aqui, não é?
- Termina aqui? Não! Claro que não. – respondi, incisivamente. Stênio e Heline se espantaram. Não era a reação que eles esperavam.
- Claro que terminamos, Bielle. Stênio não vai mais poder fingir que namora você. A Jade não vai gostar nada dessa história. – lembrou Heline. - E com razão.
- Afinal, ela não sabia que você e eu somos namorados? – perguntei ao Stênio.
- Eu disse que tínhamos terminado. – suspirei de raiva ao ouvi-lo. – O que você queria que eu fizesse, Gabrielle? Eu sou apaixonado por ela faz tempo e você sabe. Agora que ela me deu uma chance, não posso deixar passar.
- Você foi a segunda opção da Jade. Ainda não percebeu isso? – irritada, levantei-me de novo e coloquei a cabeça para fora da janela.
- Pra mim tanto faz, Gabrielle. – Stênio, como um bobo apaixonado.
- Gabrielle... – Heline se levantou e me abraçou por trás. – O Stênio tem todo o direito de acabar com a nossa farsa. E a gente pode namorar escondido, como antes...
- Não. Acho que já passou da hora de assumirmos o nosso namoro. – fui veemente. Ela me olhou barbarizada. Stênio se levantou e me lançou o mesmo olhar. Heline, delicadamente, como se eu pudesse falar outra abobrinha, tentou uma solução:
- Não precisa, Gabrielle. Vamos namorar escondido. É melhor.
- Não, não é melhor.
- É sim! Não vai dar certo. Seus pais não vão aceitar, e nem os meus. E você sabe que seu pai é preconceituoso. – teimou Heline. Infelizmente, eu já esperava que ela não me apoiasse. Desde que começamos a ficar, tentei revelar o namoro, mas ela discordou. Heline se preocupava muito com o preconceito dos outros, se prendia pelos meros cochichos alheios, ao contrário de mim, que não dava ouvidos a ninguém. Nós duas não nos largávamos mais e só descobri que meus familiares desconfiavam de nossa amizade porque meu primo Guga, nas férias passadas, me deu o seguinte toque:
“Prima, ouvi, sem querer, que a tia Helô e a vó Nívea estavam achando estranha a sua amizade com a Heline.”
“Quando você ouviu isso?”
“Ontem mesmo. Bom, pensei que você iria gostar de saber”.
Guga e eu também éramos amigos, mas depois que ele foi morar em outra cidade nos distanciamos um pouco. Percebi que nossa relação permanecia intacta após essa demonstração de cumplicidade. Heline e eu não conseguíamos ficar longe uma da outra e nem esconder que não éramos apenas amigas. Todos no colégio sabiam que ela e eu nos pegávamos, e como eles já eram bem crescidinhos, o preconceito era mínimo. No entanto, havia aquele em que a mente aberta superava as demais: Stênio.
A paixão que Stênio sentia por Jade era antiga, mas ela já tinha namorado e mal sabia da existência de meu amigo. Nossa amizade se aperfeiçoou quando fomos aprovados para mesma universidade e ele, Heline e eu formávamos um trio quase que inseparável, ainda que ele fosse de curso diferente do nosso – minha namorada também era de publicidade, porém em outro turno. O meu falso namoro com Stênio, contudo, surgiu sem pretensão. Ele marcou de ir à minha casa numa tarde de domingo. Esqueci completamente namorando Heline na escada do prédio dela. Ao chegar em casa, encontrei Stênio e meu pai tomando cerveja juntos. Não era realmente a cena que eu esperava ver.
Papai se levantou e me chamou atenção:
- Filha, nunca mais deixe seu namorado esperando. Por sorte, eu estava aqui para fazer companhia a ele.
Stênio estava tão espantado quanto. Surpresa, perguntei:
- Namorado?
- Mas, seu Ítalo... – Alan começou.
- Ah, acho que entendi errado... Realmente você não me disse... Vocês não são namorados... – papai se consertou – Mas poderiam ser. Eu gostei do Stênio. Gente boa, tem um papo bacana e até que é um cara bonito. 
- É sim... – concordei, admirando a tal beleza do corpo moreno de Stênio. Meu amigo desejava ter onde se esconder, de tanta vergonha. E assim que papai nos deixou sozinhos, abracei Stênio com toda a minha força e o pedi, quase implorando:
- Amigo, me ajuda. Por favor.
- Ajuda? – Alan desconfiava.
- Me ajuda. Vamos aproveitar que meu pai gostou de você e...
- Isso não vai dar certo, Gabrielle.
- Vai dar sim. Acho até que ele já desconfia de mim, ou não me empurraria pra você assim. Nós já somos amigos, nos respeitamos e eu vou te dever essa para o resto da minha vida. Senão a Heline vai querer terminar o nosso namoro! Você sabe que ela se preocupa muito com a opinião alheia. Por favor, ao menos por enquanto. Por favor!

                                               *** 
- Gabrielle, a Heline tem razão: essa ideia de querer se assumir é maluca. Sua família toda vai levar um choque. – argumentou Stênio. Heline me levou até a cama e me fez sentar ao seu lado. Com carinho, ela pegou a minha mão, beijou-a e voltou a teimar que o nosso namoro poderia seguir firme se nós voltássemos a namorar escondido.
- Por que você não quer assumir, Heline?
- Bielle, é uma ideia precipitada e... Tenho medo do que seus pais vão dizer... A sua mãe é até mais compreensiva, agora o seu pai...
- Heline, - dessa vez, eu peguei nas mãos dela e as beijei. – não ligue para o que eles vão falar, eu já te disse. O que eles pensam a meu respeito não me importa. Você também não deveria ser importar.
- Pra você é fácil. Sua mãe é mente aberta. Até seus avós. – argumentou Heline.
- Então, eles vão nos ajudar. Vão ficar do nosso lado.
- Mas e seus primos, seus tios... E se de repente seus avós se chocarem com isso? A sua família é grande, vai ficar naquela hipocrisia, naqueles sussurros quando a gente passar...
- Eu já disse que meus avós são tranquilos. E não ligue, não dê bola. Não deixe esses sussurros te assustarem. Se eles julgarem será porque são uns insensíveis ou será pelo simples fato de que eles não estão aqui no meu lugar, não sentem o que eu sinto por você e o que eu sinto por você é muito maior do que nós duas podemos imaginar. – declarei-me e a beijei nos lábios. - Eu te amo pra caramba.
- Eu também te amo. - e me beijou. - Mas ainda acho muito arriscado.
- Heline, já dizia um poema que eu gosto tanto: *"Minha condição, quando amo, é não ter condição. É ser livre dessas rédeas, por um amor bem mais perfeito. Por um beijo a qualquer tempo e em total aceitação..."
Para melar o clima, Stênio me cortou:
- Eu vou vomitar arco-íris se você continuar a recitar esse poema.
- Parei. Até porque é o único que sei. - admiti.
Levantei-me da cama e ordenei:
- Vamos descer. Vou contar tudo agora. Pra todo mundo.
- Gabrielle, você não tem senso do ridículo, não? – perguntou-me Stênio, seriamente. – Tudo bem que sua família não seja preconceituosa, mas anunciar pra todos que você e sua melhor amiga são namoradas é prova de que você não tá bem das ideias.
- Tudo bem, então. Assim que acabar a festa, conto para os meus pais. Agora vamos descer. – e os puxei para a escada. A casa fervilhava de tanta gente e tanto alvoroço. Quando meus avós nos viram, logo puxaram Stênio para conversar. Ele tinha mais paciência para conversar com eles do que os próprios netos, meus primos, e por isso ele era tão querido. Heline foi oferecer ajuda à minha mãe com a louça e por lá ficou.
Eu estava ansiosa. Meus parentes não deixariam a casa antes da meia noite, portanto, eu teria que aguentar mais um tempo para contar aos meus pais do meu namoro com Heline; que era com ela que eu namorava, e não com Alan. Era com ela que eu dividia meus beijos mais sensíveis e mais lascivos, mais puros e tão pecadores. Era por Heline que eu realmente era apaixonada, com quem eu dormia de conchinha, que eu aproveitava quando não havia ninguém em casa para nos amarmos profunda e secretamente. Se eu não revelasse e me libertasse logo eu enlouqueceria.
- Prima, você ouviu o que eu disse?
Guga estava ao meu lado e eu nem havia percebido. Eu estava perdida nos meus próprios pensamentos e nem me dei conta de que estava no palanque da casa e que meu primo se sentara ao meu lado. Pedi desculpas e ele repetiu:
- Eu só comentei: tio Ítalo e tia Helô adoram o seu namorado, não é?
- É, adoram. – respondi, com os olhos em Heline. Minha mãe mexia nos cabelos curtos de minha namorada e conversavam algo que eu não sabia dizer o que era.
- Mas não é dele realmente que você gosta, não é?
- Não. – respondi, aleatoriamente. Olhei para Guga, e perguntei:
- O que foi que você me perguntou?
Meu primo riu e apenas disse:
- Deixa pra lá... Ah, você cursa publicidade e propaganda, não é?
- Curso.
- Ah bom, você já estudou...
Tive que interromper o que Guga contava para atender à vovó, que pedia pra eu me juntar a ela, meu avô e ao Stênio. Depois de cantarmos os “parabéns a você”, em que vovó simbolizou a primeira fatia de bolo para todos os netos e deu ao primeiro bisneto, o gorduchinho Nando, de quatro anos, que a azucrinava por uma fatia do doce. A minha agonia duplicava e os meus parentes não saíam da casa. Conversei com Stênio e expliquei que ele poderia ir embora, mas meu amigo preferiu ficar ao nosso lado quando eu fosse revelar a verdade aos meus pais.
Meus tios Ramil e Solange, os pais de Guga, foram os últimos a sair. Meus pais e meus avós lavavam a louça quando eu disse que precisava conversar  com eles. Para muitos, não seria necessária a presença dos velhos, mas ambos foram fundamentais na minha criação e era justo não ficarem sabendo por terceiros.
Mamãe estranhou tanta urgência de minha parte em persistir numa conversa com ela, meu pai e meus avós ali, naquele instante, quando estávamos todos cansados. Porém, se eu não revelasse logo, perderia a minha coragem. Stênio estava disposto a ficar ao nosso lado. Foi ele, afinal, quem ajudou nessa farsa todo esse tempo e enganou meus familiares. Meu namorado de mentira estava ansioso; eu também. Heline estava uma pilha. Seus cabelos loiros estavam bagunçados, pois ela não os deixava em paz. Era uma mania dela: mexer no cabelo quando estava nervosa.
Stênio, Heline e eu nos sentamos no maior sofá da sala. Novamente, Heline pôs os cabelos para trás da orelha, me olhou com calma e perguntou, num tom ameno:
- Você me ama, não é?
- Amo. É claro. – respondi aquela pergunta estapafúrdia.
- Então, é isso que importa: que nós duas nos amamos. Você não precisa dizer nada a eles, ninguém nunca vai saber e nem precisa. É algo nosso. Só nosso.
- Não, Heline. Nós já conversamos sobre isso! – relembrei, com a paciência menor que uma formiga. – Nós envolvemos Stênio nisso e agora temos que desfazer.
- Mas...
- E não é só isso: - peguei a mão dela e fiz tocar em meu peito – tá ouvindo? Meu coração tá acelerado. Eu tô nervosa, você tá e o Stênio também, mas é preciso. Não dá mais pra ficar escondendo um namoro como se estivéssemos cometendo um crime! Nós não estamos fazendo nada além de nos amar. O nosso amor não é pecado algum!
- Eu sei, mas... Mas e se não der certo? E se seus pais não aceitarem? Os meus também não vão ser fáceis.
A pergunta que estava faltando era essa. O meu último argumento:
- Não quero saber. Eu te aceito, você me aceita. Talvez eles nos julguem, talvez não. Mas não me importa qual a reação deles... Eles podem explodir de raiva e se isso acontecer será porque eles não entendem o amor de verdade. Não entendem o nosso amor. – sem perceber, meu tom de voz aumentava. – Eles não entendem como é bom ter você ao meu lado, como é ter a tua companhia, como é não ser só, como é um amor sem cobranças, como é gostar tanto de alguém, passar o dia todo junto e não querer largar... Heline, eles não sabem como é ter alguém como você. Eu sei.
Sequei a lágrima que atravessava a bochecha de Heline. Recebi um abraço carinhoso de minha namorada.
- A Gabrielle te ama, Heline. – comentou Stênio, sereno. - E eu vou vomitar esse arco-íris agora.
- Eu também a amo. – Heline me beijou nos lábios.
- Chegamos, meninos! – anunciou mamãe. Ela e papai entraram na sala. Heline e eu nos desgrudamos, mas não tivemos tempo de secar nosso rosto. As duas haviam chorado. Por sorte não fomos flagradas. – Por que o choro? – mamãe perguntou, sentada em outro sofá, na nossa frente, com sorriso descontraído.
Perguntei pelos meus avós e papai me respondeu:
- Eles estavam muito cansados e foram se deitar. – nos observando calados, perguntou: - Então, o que vocês queriam? – nós ainda não falamos nada. Nenhum de nós não sabia por onde começar. – Por que vocês estão tão sérios?
Stênio estilhaçou o silêncio:
- Seu Ítalo, dona Helô... Tenho uma coisa a contar a vocês. – iniciou, de um jeito tenro.
- “Seu Ítalo, dona Helô”? Você nos chama de tios! – protestou mamãe. Preocupada, inquiriu: - O que tá havendo? Falem logo!
- Tudo bem... – Stênio respirou fundo. Secou o suor de sua testa e com os lábios frementes, continuou: - Gabrielle e eu não estamos namorando. Nós...
- Nós terminamos já tem mais de uma semana. É isso. – interrompi-o, subitamente. Alan e Heline se assustaram. Agora eu tinha que inventar uma boa mentira.
- Como assim “terminaram”? – papai perguntou, confuso.
- Nós terminamos, pai, já tem uma semana. Acontece que nós não falamos nada porque nós sabemos que vocês, meus avós gostam tanto dele e eu não queria chateá-los. E a Heline... – engoli em seco e continuei – Ela tem me dado a maior força nesses dias. Por isso a gente anda junto o tempo todo. – expliquei, cautelosamente. O medo bateu e ali ficou. De última hora, mudei de ideia quanto à verdade.
Meus pais se olharam e deram de ombros, conformados. Papai se levantou, espreguiçando-se e comentou, amigavelmente:
- Eu preferia que vocês não tivessem terminado, mas quem sabe disso são vocês. Stênio  será sempre bem vindo aqui e em nossa casa, ele sabe.
- Obrigado, tio Ítalo. – Stênio enrubesceu.
- De nada. É só a verdade. Agora espero que o próximo namorado de minha filha seja tão legal quanto você. – desejou papai. Mamãe também se levantou.
- Um namorado... Ou... Namorada. – Stênio disparou. Heline quase caiu do sofá. Papai fez careta de nojo.
- Namorada?
- É, o mundo hoje anda tão moderno. – Stênio, olhando para os lados, cobrando que eu deixasse de ser covarde e contasse logo.
- O mundo pode até ser, mas eu não. – discordou papai. – Já basta o Guga com aquele namorado dele...
- O Guga é gay? - perguntei, espantada. Dessa eu não esperava.
- É sim. Uma decepção, né? Mas eu tenho certeza que a minha filha não iria me decepcionar. Agora vou indo pro quarto. Boa noite. – e subiu. Stênio suspirou aliviado e Heline me olhou meio confusa. Nós nos levantamos juntos e mamãe foi até mim.
Stênio verificou seu celular e sorria lendo uma mensagem que eu tinha quase certeza que era de Jade. Sorridente, ele nos informou que teria que sair o mais depressa possível. Beijou a cada uma de nós. “Muito obrigado. Você é o melhor amigo de todos”, sussurrei, beijando-o no rosto. Ele me devolveu o beijo e saiu correndo.
- Dona Helô, tá tudo legal? – perguntou Heline à mamãe, que nos analisava dos pés à cabeça. Também estranhei o jeito que ela me olhava e refiz a pergunta.

- Stênio é incrível mesmo, não é? – ela perguntou, sentando-se de novo e falando com sutileza. Nós concordamos. – Fingir um namoro só pra que as duas amigas pudessem namorar em paz... Não é qualquer amigo que faz isso. 
Heline e eu nos entreolhamos, incrédulas. Mas ensaiamos não saber de nada.
Mamãe riu da nossa ingenuidade e disse:
- Minha filha, seu pai pode ser besta pra essas coisas, mas eu não.
- Como assim, mãe? A senhora... Sabe da gente?
- Eu já desconfiava da amizade de vocês duas, mas não levava a sério. E depois de hoje... Só confirmei. E o comentário do Stênio ajudou. “Um namorado ou uma namorada. O mundo anda tão moderno...”. Deu pra sacar. – mamãe abafou uma risada.
- Oh mancada, hein... – lamentou Heline.
- Mãe, desculpe... Nós...
Mamãe, ainda risonha, pediu para eu me calar, fazendo um sinal:
- Não se preocupem com o pai de vocês. Com o tempo ele vai deixando esse preconceito de lado, e eu vou ajudando com isso. Mas deem mais um tempo e ele, meninas. Porque... Não é fácil... – ela riu, contendo o choro. – Não é fácil descobrir que um filho nosso é... Pensar com o filho dos outros é fácil, mas quando é com a gente...
- E como você aceitou, mãe?
- Porque eu já desconfiava tem um tempinho, Gabrielle. Eu não sentia muita firmeza no seu namoro com Stênio, mas eu não falava nada. E vocês duas sempre juntas... Você falava mais de Heline do que de Stênio!
- E você não tem preconceitos, dona Helô? – Heline inquiriu, sem jeito.
- Todo mundo tem, Heline. Todo mundo. - respondeu pensativa- Nem que seja um pouquinho, mas tem... E é minha filha. Eu a amo. O que eu posso fazer? Mandar ela gostar de tomate e não de cebola?
Não resistimos a abraço de mãe e filha. Mas ainda sem entender, perguntei:
- Como você desconfiava, mãe?
- Gabrielle e Heline, aprendam uma coisa: mãe é quem dá luz e também quem cuida, quem cria, educa. Ninguém conhece os filhos mais do que nós. Vocês podem esconder as coisas de quem quiserem, menos de nós. Porque, meninas, mãe é mãe. Nós conhecemos nossos filhos melhor que ninguém, nunca esqueçam. Só peço que continuem sendo discretas, por enquanto, para que o teu pai não tenha um infarto, mas não deixem de viver esse amor de vocês. Prometo que vou moldando a cabeça dura dele aos pouquinhos.


"E sejam livres dessas rédeas, por um amor bem mais perfeito. Por um beijo a qualquer tempo e em total aceitação...".


                 

                

*ODILON, Andrei. Um quê de poesia. Janeiro, 2015.
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Comentários

Unknown disse…
Você é singularmente ótimo neste gênero. Não pare de escrever. E obrigado por me envolver em sua arte. Sou todo admiração!
Um grande abraço, grande amigo!
Um conto tão moderno... ehehehe.
Por uns instantes parecia que eu tava lendo roteiro de novela das oito.
Sua prosa tá cada vez melhor e mais madura, sua caracterização de personagens e evolução narrativa.
Gostei bastante da "surpresa" do conto! Não imaginava que Heline fosse o vértice do triângulo amoroso principal, foi criativo :)
Parabéns por esse conto novo, que venham outros tão bons e interessantes quanto esse.
Unknown disse…
grande Victório. Maravilha...

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