Conto: De irmão para irmão.
De irmão pra irmão
Capítulo
1
Meu rosto
estava vermelho e molhado; o travesseiro úmido. Mas, enfim, com muita
dificuldade, peguei no sono.
Eu
caminhava com agilidade pelo mesmo corredor longo e escuro. Era o mesmo
corredor de antes, porém mórbido. Tateando a parede do lado esquerdo, encontrei
a maçaneta destrancada. Entrei silenciosamente e tentei acender as luzes, mas
eu só ouvia o ruído do interruptor. Via-se nada, com exceção da sombra da mesa
e das cadeiras produzidas pela luz vinda do poste, do lado de fora. Além disso,
muito pouco era visível.
Aos
poucos, meus olhos foram se acostumando com a falta de luz e me senti em casa
novamente. Era a sala de aula em que Luciano, - ou Luc, como eu o chamava desde
criança - meu irmão, estudou por três anos, quando fomos alunos do Colégio
Coração de Estudante na pequena cidade de Relicário. Ela estava estranhamente
em perfeita ordem, apenas precisava de uma boa e nova bagunça, mas acho que
iria permanecer organizada por um tempo indeterminado. Eu não teria coragem nem
criatividade o suficiente de fazê-la sozinho. Nem isso, nem nada mais. Sozinho
eu não fazia grandes coisas.
Eu havia
presenciado dias de muita baderna naquela sala de aula e muito disso foi
contribuição minha. Porém, a sensação era outra, agora. Arrastei as carteiras,
sentei-me no tablado da sala e, encostado à parede, deixei cair mais uma
lágrima. Meus olhos já haviam brotado centenas delas àquele dia. Enxugando mais
uma, notei o som de algo leve caindo no fundão. Assustado com a própria
infantilidade de supor o que seria o tal objeto, fui até lá, em silêncio, para
pegá-lo. Agachei-me e, como eu previa, era o maço de cigarros. Retirei-o do
chão. Talvez a fita isolante que Luciano enrolava para grudar abaixo do braço
da carteira tivesse resistido ao tempo e caído.
Abri o
maço de cigarros, mas só havia dois fumos. Se eu ao menos tivesse levado um
isqueiro comigo, eu, quem sabe, fumaria um. Coloquei o cigarro na boca, mas na
mesma hora o tirei, lamentando a falta de fogo.
As luzes
se acenderam e uma voz familiar, que vinha da porta da sala, perguntou:
- Você
não vai fumar sozinho, vai?
Eu
poderia ter deixado cair o maço de cigarros, sair correndo da sala e derrubar
as carteiras que ainda estavam enfileiradas. Eu poderia estar delirando.
- Você
vai ficar aí parado, Tadzo?
Luciano
largara o interruptor e enfiara as mãos no bolso. Usava a calça jeans preta com
alguns recortes que ele próprio fizera para dar um tom de rebeldia e a mesma
camiseta preta com o logotipo do Metallica para homenagear o show de rock e a
própria banda Atroz, na qual era guitarrista. No entanto, estavam limpas e não
encharcadas de suor nem sujas de lama como antes de... Como eu imaginava que
deveriam estar. Elas estavam limpas e novas, e notei que os cortes no pescoço
tinham cicatrizado, assim como nos olhos, que estavam vívidos e exatamente no
lugar. Os dois braços, também, não estavam mais retalhados e exibiam os
músculos firmes e intactos pela camiseta sem manga. A pulseira, de artesanato
simples e preto, e o cordão, também preto e com um símbolo de uma nota musical
de material rochoso, estavam em seus devidos lugares, diferentemente da última
vez que os vi, distante do corpo de meu irmão. E, possivelmente, na posse
daquele indivíduo fétido e degradante.
Como a nossa
mãe, a sensível Cecília dos Anjos, Luc, com seus vinte e cinco anos, tinha os
cabelos lisos e castanhos, porém mais curtos; já os meus era um tom mais claro,
quase loiro e com um topete, e mesmo sendo liso como o deles, isso quase não
era perceptível devido ao penteado, para que ficasse como o de nosso falecido
pai, Davi. Eu o conheci apenas por fotografias antigas que mamãe guardava em
álbuns e em porta-retratos, mas eu sabia que, assim como ele, Luciano tinha
olhos verdes, e eu puxei o lado materno, com as cores mais escuras nos olhos.
Meu irmão e eu tínhamos o sorriso largo e jocoso de nosso pai, o qual Luciano
ganhava mais na simpatia e eu na timidez. Eles dois, aliás, eram homens
charmosos, e quase que comumente, como um defeito, também me abandonaram.
No caso
de Luciano, só parecia ter me abandonado. Ele estava ali, na minha frente.
- Você
quer fogo? Eu tenho aqui. – ofereceu-me Luc.
Emudecido,
deixei os fundos da sala. Enquanto eu me aproximava de Luciano, ele sorria
brandamente, com um aspecto bonito e tenro. Abracei-o em desespero, apertando-o
para que ele não tivesse chances de se me soltar. Meu irmão afagava meus
cabelos molhados e, rindo, pedia:
- Para de
chorar, rapaz. Não era você que dizia que homem não chora por nada? – Luc me
soltou e tentei explicar, soluçando:
- É que
você está... Aqui e... Não era pra você estar aqui e...
- Calma,
irmãozinho. Você não tá dizendo nada com coisa, nem coisa com nada. – disse com
o mesmo humor de sempre.
- É que,
você está... – parei de falar. Eu ainda não conseguia pronunciar a palavra sem
um pesar interior. - E você... Você surge com a aparência de que estava antes
do show. – expliquei, e Luc, delicadamente, enxugou as lágrimas do meu rosto.
- Era pra
eu não estar?
Apenas
balancei a cabeça negativamente e Luciano me entregou um isqueiro transparente,
que ele havia pegado de alguém da plateia antes do show da banda Atroz. Ele se
sentou no tablado e, com um gesto, me pediu para sentar também. Sem tirar os
olhos dele, fiquei ao seu lado, e frente para as cadeiras que eu já havia
desorganizado.
Antes de
acender o nosso cigarro, Lucianoavisou com seriedade:
- Vou
fumar só para lhe fazer companhia.
- E
porque você também quer.
- Hum...
Não. Não como antes. – Luciano mirava o cigarro com indiferença.
Ao
perceber minha expressão de desentendimento, Luciano me respondeu:
- Não sei
por que isso acontece, só perdi a vontade. A necessidade – Luc deu uma última
tragada e apagou o cigarro no chão. Apontou para o lixeiro e o jogou. Ainda que
alguns centímetros distantes dele, mas próximo a mim, acertou.
- Eu como
irmão mais velho, jamais deveria ter permitido que você fumasse. – desabafou,
com tristeza.
- Mas a
culpa não foi sua, foi...
- Não?
Você já me viu fumando, Tadzo!
- Eu sei,
mas... Mas você me bateu, lembra? E me ameaçou um soco mais forte se eu
voltasse a fumar. Você tentou. – à toa, forcei uma defesa a favor dele.
- E você
disse que só pararia de fumar se eu parasse também, lembra? Eu não quis parar,
deveria ter evitado. Você tinha acabado de completar quinze anos e...
- Você
não vai ficar se culpando agora, vai? Luc, se você quiser que eu pare de fumar,
eu paro. Até porque eu não tenho dinheiro pra ficar comprando cigarro. Eu
fumava os seus. Você dividia comigo, assim como as cervejas.
- É
verdade. – Luciano riu.
- Mas não
me peça pra parar de beber, Luc! – pedi, em tom de advertência.
- Tudo
bem. Não é a bebida que eu quero que você deixe de lado. Até porque, esse ano
você fará dezoito anos e a mamãe não vai mais poder pegar no seu pé. Mas vai
sim, não duvide.
- Tá, e o
que você quer que eu faça, então?
Luciano
tirou o isqueiro do bolso e o fez acender. Acendia e apagava. Acendia e
apagava. Era um hábito dele que me agoniava, mas não o pedi para que parasse.
Não estava me agoniando tanto assim. Era um alívio.
- Eu ia
te pedir pra parar de chorar, mas te conhecendo, acho que vai demorar um pouco,
não?
- Vai
sim. – respondi, amarrando a cara. Mas ele riu com satisfação.
- Pois é.
Então vou te pedir outra coisa, Tadzo.
- O que
é?
- Quero
que aprenda a tocar violão. – um pedido com jeito de ordem. Incrédulo, eu
neguei:
- Não,
não tenho como aprender. – fui enfático.
- Claro
que tem.
- Eu
tentei várias vezes, mas não aprendi. Você lembra, Luc.
- Você
não tentou o bastante. – brincando com o isqueiro.
- Tentei
sim! Meus dedos doeram muito!
- Não
doeram o bastante. – disse, indiferente.
- Eu tive
muitas aulas, mas...
- Mas
foram insuficientes. Pague outras. Chame a Agatha e peça umas aulas, ela vai
adorar te ensinar. – persistiu Luciano, rispidamente.
- Ela nem
iria cobrar. Mas se cobrasse, eu pagaria com que dinheiro?
- Use o
meu, oras. Você sabe onde fica guardado e também sabe a senha da minha conta no
banco. – Luciano, com um tom de obviedade. – Ou você também pode vender aquela
sua coleção idiota de...
- Não vou
usar o seu dinheiro. Nem vou vender nada.
- Você
pode ficar com tudo o que eu tenho, até com as minhas guitarras. Você pode
vendê-la. Eu te daria até meu carro, ainda que você fosse menor de idade,
mas... Ah, você só não pode ficar com a minha namorada. – ressaltou, com um
sorriso discreto.
-
Namorada? Mas você pediu a Melina em namoro, então? – perguntei, confuso.
- Ah,
é... Nem tive tempo. – lembrou-se, com um sorriso deslavado – Mas a noite foi
ótima, disso eu te garoto, meu irmãozinho.
- Então
você e sua amiga de infância chegaram aos finalmente logo na primeira noite? –
perguntei, curioso, enganando aquele momento de aflição.
- Claro,
com uma ruiva daquelas... – Luc suspirava feito bobo. - Mas depois nós falamos
disso.
- Enfim,
eu não vou usar o seu dinheiro.
- Alguém
tem que usar, Tadzo. – insistiu Luciano, ainda mais sério. – Eu não vou poder
gastar, não terei como. Aliás, digo o mesmo sobre meu violão! – ele parecia ter
esquecido Tom Zé, o antigo violão dele – Mano, você tem o meu violão, nem vai
precisar comprar um. Usa o Tom Zé! – lembrou, contente.
-
Luciano, - toquei no ombro dele, penalizado – não me peça isso. Não tenho clima
pra ficar tocando violão.
- Claro
que tem! Pra ouvir música não tem hora, você sempre me disse isso, Tadzo! Não
se contradiga!
- Mas é
diferente agora, Luciano!
- Não é
não. – e se levantou. Luciano esticou o braço direito e me levantou. – Basta
você ligar pra Agatha e...
- Para, Luc!
Para! – gritei, sem conter a irritação. Luciano deveria estar cego, surdo e
mudo. – Não vou ligar para ninguém agora. A mamãe vai achar que eu estou
ficando maluco querendo aprender a tocar violão num clima desses.
- Mas é o
seu irmão que está pedindo. – insistiu, com uma expressão infantil.
- Mamãe
vai dizer que estou ainda mais maluco! – argumentei, ainda sem acreditar nos
absurdos que ele dizia.
- Vai
nada...
- Luc,
você ainda não entendeu que as coisas mudaram? – tentei evitar que chegasse
nesse assunto, mas não tive outro jeito. Luc compreendeu o que eu quis dizer.
- Eu não
fui embora. Estou aqui com você. – confortou-me, calmamente.
- Está
agora. – eu disse, e Luciano se aproximou da porta e encostou o dedo, sem
apertar, no interruptor. E com postura de um professor ministrando aula aos
seus alunos aéreos, ele iniciou:
- Você tem
que aprender duas coisas, urgentemente, maninho: a primeira delas é que você
precisa tocar violão. Eu te dou minha palheta, como incentivo, a primeira que
eu tive. – e retirou do bolso uma palheta preta e me entregou.
- E a
outra coisa? – inquiri, sem lhe dar ouvidos.
- E a
outra coisa? É a prender que eu estarei sempre por aqui quando você precisar,
como sempre estive. É só você me chamar. E não importa como, eu estarei aqui
com você, Tadzo.
- Mas
como?
- Você
sabe como. – respondeu, sem dizer muita coisa, deu uma piscadela e um sorriso
brejeiro, apertou no interruptor e as luzes se apagaram.
Acordei
com o peito e os cabelos molhados de suor. O quarto estava escuro e sombrio.
Apesar do calor, eu tremia. Mas de medo. Levantei-me abruptamente e acendi a
lâmpada do quarto. Voltei-me para a cama e percebi que havia uma palheta preta
em cima do meu criado mudo. Uma das palhetas que Luciano costumava tocar nos
shows da Atroz; e eu não me lembrava de tê-la deixado ali.
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