Conto: O Outro Pai

O OUTRO PAI 

A quentura no corpo frágil de Gui afrontava Ciane. O termômetro marcava 39. A febre se instalava no pequenino, e o choro sofrido ecoava em sua modesta casa. Os 11 meses de vida carregavam uma história bordada por laços meticulosos e pungentes. Ciane o amava mais que a si, porém só o amor dela não era o suficiente para cuidar do filho. Ela ainda estudava quando engravidou. Com 20 anos, ainda estava na metade do curso de fisioterapia, mas não aceitou abortar o filho que já repousava em seu ventre. Essa ideia foi de Edson, seu namorado e pai da criança. Tiveram uma das mais impetuosas discussões, contudo desistiu do aborto.
O corpo vigoroso de Edson se enfraqueceu depois da gravidez. A alimentação não era mais saudável, o rosto perdeu o brilho. A barba, que não deixava crescer, agora o aparentava ser mais velho do que já era. Ciane, no entanto, não perdeu a cor dos olhos, nos cabelos ou na vida. Mulher não nasce mãe e não nasce sabendo como é ser mãe, mas há aquelas que a maternidade floresce na alma. Também há pais e pais. Edson não estava preparado para ser pai, nem se esforçava. Teve que trabalhar de garçom no restaurante dos pais para sustentar a nova família, achando tudo um sacrifício. Seus 25 anos não o faziam um cara maduro, apenas uma pessoa mais velha, que parou no tempo, estagnou a mente, freou os passos. Mas ele tinha Helder, seu irmão 4 anos mais novo. Se Edson e Ciane mantinham uma vida harmônica e relativamente tranquila, Helder era o responsável.
- Você demorou muito, Edson! – reclamou Ciane, levantando-se do sofá, com o filho no colo. O choro de Gui arranhava o raciocínio dela e as lágrimas que manchavam o rosto fofo da criança a doíam. Ainda era bebê, mas era possível ver que os traços de astúcia, com os lábios de bico carnudo e os olhos raivosos vieram do pai.
- Tá aqui o remédio. Tá aqui! – Edson entregou a ela um vidro de remédio que serviria para Gui tomar em gotas.
- Se ele não melhorar, vamos ter que levá-lo ao médico! – alertou Ciane, pegando a sacola e a colocando em cima da mesa.
- Odeio ter meu pai como chefe! – rezingou, tirando a camisa e indo para a cozinha. – Só me liberou do restaurante porque Gui tá doente. – e colocou sua carteira em cima da mesa.
- Mas o seu Sandro tem sido tão paciente com você e... – discordava Ciane, tirando o remédio de gotas da sacola. Aconteceu o que ela temia. – Edson, cadê a pomada?
- Pomada? – perguntou e se lembrou. O esquecimento de Edson estava na perplexidade no seu rosto. Ciane se descompensou:
- Edson, caramba! Eu disse pra você não esquecer da pomada! – Gui berrou com o grito da mãe. – A nossa sorte é que o teu irmão tá vindo aqui. – contou, já esperando que Edson retrucasse com reprovação.
- O quê? Você chamou o Helder?!
- Chamei. Eu sabia que você ia esquecer de algum remédio. Eu pensei até que você não viesse. 
- Mas eu vim. Eu vim. – Edosn voltou para a sala e pôs a camisa novamente. – Eu sou o pai dele, e não o Helder, Ciane!
- É fácil falar que é pai, Edson! Pena que nem sempre você lembra disso! – gritou Ciane. O som do berro de Guilherme era mais forte que a gritaria dos pais. A discussão parecia abafar o desespero do garotinho.
- O que você quer dizer com isso, hein? Quer dizer que eu não cuido do nosso filho? - inquiriu, visivelmente ofendido.
- Ah, Edson, não se faça de besta. Quantas vezes você já me deixou sem ter o que comer com ele aqui? Quantas vezes você chegou bêbado enquanto Gui ardia de febre?
- Pouquíssimas vezes, Ciane! Eu sou um ótimo pai pro Gui! - respondeu, com veemência. Para Ciane, foi um tremendo cara de pau.
- Você é um cínico! Nem queria que ele nascesse!
Edson não teve como revidar. Ele não suportava quando Ciane lembrava disso. Se ele pudesse, esqueceria que a pediu para abordar o bebê. Para ele, ficou no passado; para ela, é vivo no presente.
- Eu nem lembro mais disso, Ciane. Você também poderia fazer o mesmo. – sugando a calma do oxigênio.
- Pra você é fácil. Eu sou a mãe dele e nunca vou esquecer. – revidou. A porta se abriu e Helder entrou. A camisa polo e o cabelo arrumado lembrou Ciane que ele poderia ter vindo da universidade. Estava quase no fim do curso de Direito, atarefado com monografia e com um estágio, ainda tinha tempo para ajudá-la com Guilherme. Era a função por ser tio e padrinho que ele se pôs e tinha o maior prazer em cuidar do garoto. Por ser amigo de Ciane, ele foi o primeiro a tomar conhecimento da gravidez. Saber que iria ser tio e provavelmente o padrinho foi a maior alegria. No entanto, conhecia o irmão e tinha certeza que ele iria reagir de modo negativo e preparou a cunhada. A relação dos dois irmãos não era muito amigável. As diferenças de gênios avançavam com o crescimento deles. Helder, por sua vez, tentava não bater de frente com o irmão. Já Edson se incomodava com o jeito responsável e determinado dele e implicava com a timidez e, acima de tudo, pouco namorador. Com o nascimento de Gui, o clima não favoreceu.
Ter um filho era um dos sonhos de Helder e a vinda do sobrinho faria do seu sonho quase realizado. Mas constituir uma família ainda não era o objetivo de vida. Portanto, ira amar o filho de seu irmão como se fosse seu, já amava assim que ficou sabendo da gravidez. O salário de estagiário não era o dos melhores, porém prometeu a Edson que o ajudaria nas despesas de Gui. Apenas assim ele se tranquilizou e desistiu da ideia do aborto. “Mesmo que você não assumisse a criança, eu daria um jeito de ajudar Ciane”, garantiu Helder, que para Edson foi uma provocação. A partir daí, os três se viam com mais frequência e Helder passava o máximo de tempo que podia na casa do irmão. E isso trazia imbróglios na relação da família.
Percebendo que Helder entrou sem bater, Edson perguntou:
- Você tem a chave de casa?
- Tenho. Você me deu, não lembra? – Helder deixou uma sacola na mesa, foi até o sobrinho e o pegou no colo. Edson teve que dar uma cópia da chave por insistência de Ciane, pois ela ameaçou delegá-lo ao seu pai sobre suas bebedeiras. – Meu filho, que choro todo é esse? – inquiriu Helder ao sobrinho, carinhosamente. 
Edson, irritado, criticou o irmão:
- Ele não é seu filho, Helder.
- Mas é como se fosse. – retrucou, andando em círculos e fazendo carinho na cabeça molhada de suor e quase careca de Gui, que já diminuía o choro. – Vocês já deram algum remédio pro Gui? Ele pode piorar!
- Não. Edson esqueceu a pomada e a gente estava te esperando. – disse Ciane.
- E por que não deram o remédio de gotas? – impaciente, Helder tirou o remédio de gotas da sacola, com Gui no colo e pediu para a cunhada colocar numa colher pequena. – Edson, não deixe mais isso acontecer com Gui. Se ele não melhorar, vamos ter que levá-lo à emergência.
- Você vai querer me ensinar a cuidar do meu filho? - Edson, irritado. 
- Não é isso, Edson. É que... – Helder parou de falar e posicionou o sobrinho para que Ciane desse o remédio a ele. O bebê voltou a chorar, e Helder cantarolava para ele se acalmar. – Gui é como um filho pra mim, por isso eu me preocupo com ele.
- Acho que já tá na hora de você ter seu próprio filho, não é, Helder? - provocou Edson.
Ciane o esganou com o olhar e Helder nem se atreveu a responder. Edson, que estava aturdido de fúria, não se calou:
- Só que pra você ter seu próprio filho você teria que transar com uma mulher. E mulher não é realmente seu forte. – ironizou Edson. Ainda mais irritada, como se tivesse sido ofendida também, Ciane não prendeu suas mãos e o esbofeteou. O tapa soou forte e se podia ver o avermelhado no rosto de Edson. Olhou a esposa com nojo, foi até a cozinha, colocou sua carteira de volta no bolso e disse para Ciane:
- Você já tem quem cuide de vocês hoje. E não se preocupem, vocês não vão sentir a minha falta. – e saiu, batendo a porta. Ciane se sentou no sofá aos prantos. Gui, por milagre, adormeceu. Helder sentou ao lado dela e agradeceu:
- Obrigado por me defender, Ciane. 
- Ele deveria te respeitar. Não sei como você aguenta. - com a voz fraca para não acordar o filho.
- Nem eu sei. Agora vá atrás do Edson.
- Não vou. Ele...
- Vá, Ciane. – mandou Helder. – Ele é o pai do Guilherme. E do jeito que ele tá com raiva, vai acabar indo pra um bar e você vai se estressar.
Ciane concordou, beijou o filho na testa e agradeceu, emocionada:
- Obrigada, cunhado. Gui tem sorte de ter você como padrinho. 
O agradecimento de Helder foi com um sorriso.
- Você sim é o pai dele. - Helder agradeceu com outro sorriso. - Volto logo.
Helder ficou sozinho com Gui. Não era a primeira vez que os pais dele saiam e ele se responsabilizava pelo sobrinho, mas era a primeira vez que os pais brigavam, saíam de casa e tinha que cuidar do garoto. Gui acordou e piscou os miúdos olhos repetidas vezes. “Oi, garoto!”, cumprimentou Helder, todo bobo. Quando não se sabe ou não se pode falar, se sorri, e foi assim que o bebê o recebeu ao acordar: sorrindo. Esperto, o sobrinho levantou a sua mãozinha e Helder levou seu dedo polegar até ela. A miúda mão de Gui agarrou o dedo adulto do padrinho, com força e não o soltou. O padrinho se derretia como manteiga quando Gui sorria para ele e mais ainda quando ele segurava seu dedo; era como se soubesse que o tio sempre estava e sempre estaria ali para colocá-lo no colo quando fosse e quando não fosse necessário.
O sorriso infantil e banguela de Gui lembrou a Helder uma canção antiga e bonita, a versão brasileira "Smile". O bebê gostava e adormecia quando o tio cantava para ele, ainda que a voz não fosse afinada. A canção tinha uma mensagem reflexiva. Helder se levantou do sofá e iniciou a canção, calmamente, para que o afilhado descansasse.

Sorri quando a dor te torturar
E a saudade atormentar

Gui não parecia ter sono. Soltou o dedo de Helder e gargalhou para ele, que devolveu com outra risada. Por ele, o sobrinho poderia rir o dia todo e seria um dia perfeito. Porém, preferiu voltar a cantar para ele dormir.

                    Sorri quando nada terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

              O bebê piscou os olhinhos profundos mais uma vez e se acalmou. O rostinho redondo e branco como a nuvem de um dia ensolarado levava a atenção de Helder embora e trazia para ele as lembranças mais suaves. Mas Guilherme tinha que descansar. Foi preciso que Helder cantasse só mais um pouco para ele adormecer de vez.

                    Sorrir quando o sol perder a luz
E sentires uma luz
Nos teus ombros cansados, doridos.

                 Helder percebeu que Gui tinha, enfim, dormido. E que ele não mais acordaria mesmo que fosse colocado no berço. Mas para se certificar, encerrou a canção.

                     Sorri mentindo a tua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és...

O cantarolar de Helder foi interrompido pelo toque do celular. A única preocupação era que Gui acordasse, mas nem se moveu. Para se equilibrar melhor, se sentou no sofá e atendeu ao telefonema de número desconhecido. Uma voz grave o atendeu:
- Boa noite, senhor. Eu falo com Helder Martins?
- Sim. Quem tá falando? – perguntou, preocupado. O bebezinho em seu colo não dava indícios de que iria acordar.
- Senhor, eu sou o policial Maciel. – informou. Para receber ligação de um policial, Helder pensou imediatamente em Edson e Ciane. – Estamos com uma ambulância, aqui próximo à Rua dos Andantes. – era a rua onde estava, em que o irmão e a cunhada moravam. Helder ouvia o policial com os olhos fixos em Gui, que dormia silenciosamente. – O senhor é irmão de Edson Martins, correto?
- Correto. O que houve? Diga logo.
- Ele a esposa foram atropelados por um caminhão, senhor. O motorista não parou para socorrê-los. Morreram na hora. Mas... - Edson não ouviu mais nada que o policial dizia. Era como se tivessem apertado no "Mudo" ou tivessem sequestrado todos os seus sentidos. 
- Senhor? Senhor? Senhor Helder? - repetia o policial. - O senhor está me ouvindo? 
- Desculpe... O que o senhor falou? Meu irmão e minha cunhada...?
- Sinto muito, senhor. Mas há câmeras de seguranças por aqui e serão verificadas. Precisamos de alguém da família aqui conosco. O senhor pode vir?

Helder não sabia o que responder. Ouviu cada palavra do policial, mas só absorveu o início. Só deu importância para a primeira frase: Edson e Ciane estavam mortos. Mortos. Eles não poderiam morrer. Não com um bebê de quase um ano de idade para criar. Eles eram os pais dele. Não podiam morrer. Não podiam!
- Senhor? – chamou o policial.
- Ah, me desculpe. Eu... Eu não posso deixar o meu sobrinho aqui. Então, ligue para o nosso pai, Sandro, ou para... Para... Uma tia nossa, vou lhe dizer o número deles, mas... Deve... Deve ter na agenda dos dois.
Depois de lembrar e informar os dois números, Helder já ia desligar, mas lhe veio uma pergunta:
- Policial?
- Sim?
- Por que o senhor ligou primeiro para mim e não para os meus tios?
- Porque o seu número está no "Favoritos" dos dois e na lista de chamados de ambos o seu número também se repete muito.
- Ok. Obrigado. – e desligou. Helder era o socorro. Apesar das implicâncias do irmão, Helder era a emergência de Edson, para quem ele corria quando precisava. 
Helder deixou cair uma lágrima nos poucos cabelos pretos e finos de Gui. Ele deveria deixar o sobrinho com uma vizinha, que já os conhecia, e ir ao encontro dos policiais. Não poderia acreditar que seu irmão e sua cunhada estavam mortos. Além do sofrimento de perdê-los, o que mais lhe atormentava era o futuro de Gui. O que seria dele sem os pais? Os pais de Helder cuidavam do restaurante e não teriam tempo para o neto. E ele? E Helder? Ele poderia auxiliar na criação do afilhado. Mas e se, no futuro, Gui se revoltasse e não aceitasse o tio como ele realmente era? E se o culpasse pela morte dos pais, como ele mesmo se culpava? Havia muito a pensar, a decidir. Helder estava atônito.
Até que a última frase de Ciane soou alto ali na sala.
“Gui tem sorte de ter você como padrinho... Você sim é o pai dele".

Com o coração apertado e ensanguentado de amor, olhou para o sobrinho adormecido, decidido do que faria e, permitindo que a lágrima caísse de novo, assegurou:
- Você não vai ficar sozinho, Gui. Não vai. Não vai, filho. 

E Gui acordou. Sorrindo. 


                    

           

Comentários

Cara... Vou nem comentar mais nada aqui...
Me encheste os olhos de lágrimas, isso já diz tudo.
Este é seu conto mais lindo e mais emocionante.
Obrigado por escrever algo assim.
Anônimo disse…
É o tipo de leitura que você não tira da cabeça, como um filme... O pequeno Gui tão cedo perdeu as pessoas mais importantes da sua vida, mas ganhou um PAI que já ama ele como filho desde sempre... Victor seu lindo, faz assim não homem! Lagrimei... Cris Freitas.

Postagens mais visitadas