Conto: Amigos do Crime

Amigos do crime

                  O Casarão - Capítulo 1
(revisão de texto - Jéssica Katarina)

A televisão da casa de Osvaldo só funcionava na pancada. Osvaldo não, Osví. Os “amigos de crime” o chamavam assim. “Osvaldo” não tinha marra, não dava medo. “Osví” também não, mas era menos brega. E naquela madrugada do dia 25 de dezembro, Osví entendeu por que eles eram seus “amigos de crime”. Porque só estavam por perto quando tinham que roubar alguma loja ou ameaçar alguém na rua com uma faca e tirar o celular da pessoa. Amigos mesmo eles não eram. Sua mãe, dona Elzira, também não era alguém com quem ele pudesse apontar e dizer: “Essa aí é parceira!”. Amigos não forçam os outros a fazerem coisas erradas.

- Osvaldo, cadê aqueles seus amiguinhos delinquentes? – dona Elzira, tragou a fumaça para os céus depois de perguntar ao filho. Ela estava sentada numa cadeira velha de madeira, com um prato de frango frio comprado com o dinheiro que pediu nas ruas. Porém, os transeuntes só davam alguns trocados, ainda que ela carregasse uma criança no colo. Uma menina que era filha da vizinha, que estava bem de saúde, mas a dona Elzira a deixou quase nua, com o cabelo bagunçado e a sujou de terra, dando um aspecto de miserabilidade na garotinha. Daí as pessoas sentiram pena (e nojo) e jogavam umas moedas nas mãos da mulher.
- Meus amiguinhos delinquentes devem estar assaltando em outro bairro e esqueceram de me chamar. – apertando botão por botão no controle remoto.
- Você não presta nem pra ter amigos. – ralhou dona Elzira. - Vá pra rua e veja se consegue alguma coisa. Vá logo!
A casa estava tão quente quanto o inferno. A televisão não funcionava, não havia comida que prestasse. A melhor saída era a rua. Osví não tinha a intenção de roubar ninguém por dois motivos: na madrugada de Natal, quase duas da manhã, não haveria ninguém nas ruas de bairros nobres – talvez algum otário dirigindo alcoolizado ou mendigos mais ferrados que ele – e também porque Osví só entrou no mundo do crime por... Nem ele sabia. Quando percebeu, tinha apontado o canivete para uma senhora na rua e arrancou a bolsa dela. Os policiais bem que tentaram alcançá-lo, mas as suas pernas de garoto de 7 anos de idade não corriam, voavam. Os becos da Rua 8 eram brincadeira de esconde-esconde para ele. Agora aos 19 anos, ele era e tinha de ser mais astuto e veloz, senão ele teria que se acomodar na cadeia, mas Osví sabia que seria solto em pouco tempo. Morava no Brasil. Na cidade Poço dos Olhos. Justiça só para os ricos. E para os ricos espertos. Na vida, tem de ser esperto, sagaz ou você é engolido e mastigado pelo mundo, e vai virar fezes de indigente.
O canivete velho de Osví seria a sua “arma de crime”. Ele poderia usar o facão ou um Tauros RT44, que tirou da farda do corpo de um policial, mas achava que não valeria a pena. Ele levaria a arma por precaução, pois matar não fazia parte dos seus planos. Os seus “amigos” se achavam os fodas quando tiravam a vida de alguém. Um deles matou três pessoas em um dia, sendo que duas delas era uma mãe e um bebê de colo, e comemorou com uns dez litrões de cerveja. Osví, com 12 anos no mundo da criminalidade, alavancava a sua glória quando apontava uma faca para alguém, quando arrancava a bolsa, a carteira ou o celular de um idoso ou casal de namorados, e os olhos da pessoa lacrimejavam e fumegavam de raiva, desespero e pavor. Mas Osví evitava assassinar. Matar o causava os mais estranhos sentimentos. O barulho feito por um calibre era um tiro no seu peito. Doía no seu ouvido e explodia na sua cabeça. Seu pai, Orlando, a única pessoa da família que se importava com ele, morreu assim, numa troca de tiros quando ainda tinha 7 anos. O som da bala e o sangue jorrando no asfalto o bombearam. A primeira vez que Osví atirou em alguém, dias depois da morte do pai, sentiu pânico e quase foi pego pelos policias. Tinha aversão à morte. Se ele a sentia por perto, corria o mais depressa para que ela não o alcançasse. Ele ouvia as maiores grosserias de sua mãe e era rejeitado pelos “amigos” por ser o único assaltante daquelas redondezas que não gostava de matar. Mas eles tinham os pais vivos, o pai não morreu levando tiros de um traficante. A maioria, ao menos. Os pais de alguns eram incentivadores e colegas de crime, outros fingiam que nada ouviam quando os vizinhos e parentes diziam “Seu filho é um marginal”. Por isso, era chamado de frouxo, de veado, medroso. Já foi agredido por deixar escapar uma boa grana quando ele tinha apenas que esfaquear um senhor de uns noventa anos, porém a condição era que ele mataria apenas de medo. Apenas de medo.
Com o canivete no bolso do short, Osví estava saindo de casa, mas voltou para ir ao banheiro para mijar. Lavando as mãos na pia defeituosa, olhou-se no espelho rachado ao meio. Seus cabelos loiros formavam um topete que já nem se movia. O corpo magricelo ainda era um dos mais fortes entre o grupo de pivetes da rua. E com o bigode, o estereótipo de ladrão o mascarava. Estava na hora de arrancar os pelinhos loiros. Somente com água e um pouco de um sabão, Osví tirou o bigode. Calçou seu velho chinelo da Kenner e pôs na cabeça seu boné da Nike. Porém naquela madrugada de Natal ele queria diferenciar mais do que a ausência do bigode. E os cabelos loiros não ficaram presos no boné.
- Feliz Natal. – desejou Osvi secamente à sua mãe. Ele não entendeu a resposta, mas pelo tom de voz pôde concluir que era um desaforo.
A Rua 8 gritava de euforia. Os bares e casas concentravam um apunhado de gente, das mais suspeitas criaturas. As mulheres dançavam com um copo de cerveja na mão, umas com a pança de fora e outras com a barriga seca, de corpo espichado. Os caras estavam tontos de bêbados, em maioria, sentados, agarrados com suas namoradas, ou agarrados a um revólver. Cada casa e bar vinham com uma barulheira diferente. Não era música, era barulho. O som indecifrável. Osví escutou alguém gritar seu nome, mas fingiu de surdo. Com a bicicleta roubada de um tapado que a deixou sem cadeado em frente ao um ginásio de esportes, Osví saiu pedalando para longe do bairro do Torneio, onde vivia.
Pedalando sem muita força, Osví observava as ruas lúgubres de bairros nobres, com os pisca-piscas ligados nos enfeites de Natal, com muito luxo, mas sem agitação. Bairros mais nobres sabiam se portar. Em cada casa deveria ter um filhinho de papai com camisa gola polo, perfume caro, carro na garagem, uma moça linda ao seu colo, a mesa farta e o paparico da família. Tipo de coisa que Osví só via em filmes. Esses mesmos mauricinhos de quem ele nutria tanta inveja já perderam pertences em frentes aos colégios ou universidades que estudavam. A única vez que Osví entrou em uma sala de universidade foi quando vestiu uma roupa melhor e se fantasiou de aluno para assaltar uma classe. Foi capa de dois jornais impressos e em várias emissoras de TV. A sua habilidade nas pernas o ajudou a pular o muro da instituição e, por um triz, não ter sido pego por um dos seguranças. Dos seus colegas assaltantes, só ele escapou.
Um casarão fez Osví frear a bicicleta e chorar os pneus, no bairro das Chicas. Era uma casa que ocupava todo o quarteirão, na rua dos Marqueses, com um muro branco alto e um jardim que ele, novamente, só via nas telas de televisão. A televisão era o meio pelo qual ele enxergava o mundo. Não tinha noção do que era o ambiente escolar. Estava repetindo a 7ª série do fundamental pela terceira vez, escapando de uma expulsão. Dona Elzira e muitos dos seus familiares diziam que “estudar não leva a lugar nenhum”. Osví estava acreditando nisso. Para ele, o sucesso de uma vida honesta só existia em um território imaginário, de gente rica, onde ele não fazia parte e nem pretendia fazer. E aquele casarão havia uma guerra antiga com o rapaz da Rua 8. Duas vezes ele tentou entrar na residência, enfrentando as câmeras de seguranças penduradas no muro, conseguiu pular o muro pela parte de trás, mas havia uma garota negra cheia de amigas rondando uma piscina e comendo churrasco. Para não arriscar, ele recuou. Mas naquela madrugada de Natal não havia câmeras para registrar, nem seguranças. Com uma rua silenciosa e sem vestígios de festa do interior do casarão, Osví largou a bicicleta, seus chinelos e escalou o muro.
Os pedregulhos do muro não dificultaram os pés descalçados de Osví. Pendurado, ele viu a área de lazer do casarão apagada. Não havia festas, comilança, nem nada. Os pés sentiram um baque ao tocarem o chão na hora do pulo. Quase não se conseguia ver a piscina, mas Osví se abaixou e a água gelada abraçou a mão dele. Seus cabelos loiros foram refletidos na água amena e sem luz. Mas ele não tinha tempo para admirar a decoração natalina ou a área de lazer que era maior do que sua casa e a casa do vizinho juntas. As plantas que estavam espalhadas nos vasos decorados tinham enfeites natalinos por todo canto, tirando o verde das folhas. Andando de vagar e ainda surpreso por não haver nada que dê segurança num casarão como aquele, chegou até as duas portas de vidro. Elas também estavam destrancadas.
“Como pode uma casa dessa estar toda escancarada?”, perguntou para si ao afastar as duas portas abertas e entrar na cozinha escura. Osví sentiu a fome bater com a mesa e pia sujas, com restos de comida nas louças. Tateou a parede e acendeu as luzes. Abriu a geladeira e deu de frente com um pirex parcialmente recheado por uma torta gelada, aparentemente de chocolate, com uns palitos doces por cima. Metade de um peru, lasanha e outras comidas que Osví esporadicamente sentia o cheiro. Sem nada de educação e com uma fome estrangulando seu estômago, retirou a bandeja de peru, pegou dois talheres sujos e, em pé, na bancada da pia, começou a destroçar os restos do jantar de Natal.
- É você, Vicente? Pensei que fosse o Marcelo. 
As mãos de Osví seguraram com firmeza o canivete por cima do bolso. Ele deveria ter carregado o revólver ou seu facão. Um cara experiente na bandidagem não invadiria um casarão sem uma boa defesa. Aquele canivete não faria nem cócegas na garota negra que entrara na cozinha. Uma moça que vestia uma calça comprida e uma blusa branca elegante para quem passaria a noite em casa. Era coisa de rico, de gente fina, de quem gasta dinheiro com besteira. Usar roupa de marca, encher a casa de comida e de pessoas sem graça para comemorar o Natal. Assim como Osví achava aquilo tudo ridículo, também sentia inveja dessas pessoas. E daquela garota.
- Você não vai me dar um abraço?
Não era o tipo de frase que o bandidinho da Rua 8 costumava ouvir de ninguém. As garotas que ele levava para a cama – ou para o chão de madeira ou para os becos escuros de ruelas – queriam abraços, beijos, chupões e as posições sexuais mais quentes e selvagens de Osví. Eram umas putas. Aquela garota de cabelos longos e encaracolados, a negra mais gostosa que apareceu na sua frente, com um corpo de uns quilinhos de banha que ressaltava a sua beleza. O perfume suave na nuca da garota o parou no tempo. Ser abraçado por uma riquinha como aquela, e descaradamente inocente, travaou sua reação. Ele largou o canivete, mas não tirou a mão do bolso.
- Menino, pega um prato e coma direito! – disse a garota, simpaticamente. Osví, voltando a segurar o canivete guardado no bolso, foi servido por ela. O nervosismo o soou mais forte do que a primeira vez que assaltou. Mas dessa vez, ele estava mudo. – Senta aqui e come. – ordenou garota, que entregou um prato com arroz, farofa e peru quentíssimos, vindo do micro-ondas. – Você estava comendo o peru gelado. Estava faminto mesmo!
- Ah, obrigado... – Osví foi educado, mas se calou ao lembrar que não sabia o nome da garota.
- Lisandra. Pera aí, Vicente, você esqueceu meu nome? Não tô acreditando. – a menina não escondeu que estava ofendida, mas Osví voltou a atacar o prato de peru. O tempo para ser educado era muito curto. – Olha, tudo bem que você passou anos morando nos Estados Unidos, deve ter ficado metido, mas não tinha como esquecer de mim! A gente era tão próximo. Tá... Nem com redes sociais a gente se fala... Desculpa se você falou comigo alguma vez pelo facebook e eu não te respondi. Eu sou muito avoada. Mas e aí? Por que você veio só agora? Pensei que você nem viria mais! E eu sei que você chegou no Brasil tem mais de um mês. Mas oh, você fez certo. Aqui o Natal sempre é sem graça. Só vem gente velha, os nossos primos saem pras festas, e eu fico aqui, sentada no sofá, conversando no celular. Se fosse com a Brícia, meu pai permitiria que eu fosse pra alguma festa, mas ela tá com outra parte da família dela. Com o Marcelo, um primo meu, meus pais até deixam, mas ele vive bêbado, nunca lembra do que faz quando enche a cara. E eu queria mesmo ir com você, Vicente. – Lisandra deu e ombros e mexeu os cabelos encaracolados - E eu sei o verdadeiro motivo por você não ter vindo. A briga entre os nossos pais. Eu espero que eles um dia possam se entender. Tudo por causa de dinheiro. – a garota, enfim, parou de falar. Lisandra esperava que Osví respondesse algo depois do monólogo quase interminável. Ele engoliu um pedaço grande de peru e começou a se justificar:
- Ah, eu não vim porque...
- Ah, já sei. O titio me disse: você tinha uma festa pra ir na casa de um amigo. Não foi isso? – Osví assentiu mastigando e ouviu um novo falatório – Acho que você sabia que aqui iria ser uma chatice e preferiu dar no pé. Você foi esperto. Mas vou te dizer uma coisa, primo. Você está diferente. Você está um pouco magro e com o cabelo mal cuidado. – tocando nos cabelos loiros dele enojada. – Você estava mais fortinho nas fotos do facebook, mas você continua um gato.
- Eu? Um gato? – Osví perguntou, engolindo o pouco de arroz que ainda tinha no prato. Elogios não eram muito comuns. Nem as mulheres que ele ficava eram tão gentis. Eram umas quaisquer e eram tratadas do jeito que mereciam. E aquela riquinha sem nem saber quem ele era o enalteceu de graça. Uma garota como aquela não existia na Rua 8.
Numa taça de vidro, Lisandra serviu refrigerante para Osví e respondeu:
- Tá um gato, sim. Mas tá muito magro. Come mais. Come. Ah! – se levantou, foi até a geladeira e voltou com um recipiente de cristal, que valia mais que a miserável vida de Osví, com a sobremesa de chocolate que ele viu na geladeira. – Vou te dizer uma coisa, primo, tenho uma certa inveja de você. – confessou Lisandra, parecendo sincera e chateada.
- Inveja de mim? Ah, você não sabe o que tá dizendo. – Osví sentiu o gosto do desabafo ao provar a sobremesa de chocolate.
- Por que não? Você morou sozinho nos Estados Unidos por dois anos, viaja sozinho, trabalha, é independente... Meus pais me privam de tudo. Isso é um saco! Eu queria ser mais livre, mas até pra ir no shopping preciso de um motorista pra me levar e me buscar.
- Você tá reclamando de ser rica?
- Tô reclamando de viver presa, de não ter companhia. Amigos eu tenho, mas não posso sair muito com eles. Meus pais me cercam de tudo. Querem ter controle sobre mim e isso me irrita.
- Tá, tá... Lisandra, posso te fazer uma pergunta?
- Pode.
- Por que na sua casa não tem câmeras de segurança? Se eu entrei, qualquer um entra. – terminando a sobremesa. Lisandra cruzou os braços, olhou para Osví, com desconfiança, e respondeu:
- Deu defeito nas câmeras. Nessa semana devem chegar novas. E meu pai liberou o segurança pro Natal. E, Vicente... Agora eu quero te fazer uma pergunta.
- Depois desse banquete, faça a pergunta que quiser.
- O que aconteceu pra você está tão mudado? – cheirando-o no rosto - A única semelhança que eu vejo em você é o cabelo loiro, mas... Você tá tão magro, usa umas roupas tão feinhas pro Natal, tá descalço, sem perfume, tá tão... Mal cuidado. E você tem tanto dinheiro...
- Olha, você não acreditaria, garota.
- Então explica. – cobrou.
- LISANDRA?! – uma voz masculina gritou pela casa. Osví se levantou e correu para a área de lazer da casa. Só podia ser o pai dela.
- Preciso ir agora. Ninguém pode me ver aqui!
- Ah, já sei. Nossos pais brigaram, o seu pai ainda tá chateado com o meu. – lembrou Lisandra, com tristeza. – Lembro de o meu pai comentar que ele e o tio Araujo estavam numa boa, mas acho que ele tava mentindo. Tudo o que envolve dinheiro dá confusão. Se bem que eles já tiveram outras brigas antes...
- É, tiveram, tiveram... Agora eu tenho que ir! – e correu para o muro. – Obrigado pelo banquete.
- Tá, mas... Por que você não vai pela porta da frente, Vicente? Aliás, como você entrou aqui? Estava tudo trancado. – indo atrás dele.
- Eu escalei o muro e é isso que vou fazer antes que alguém entre.
- TEM ALGUEM AQUI, LISANDRA?! – a voz mais grave gritada do segundo andar de casa.
- Já sei. Vou com você. – decidiu Lisandra. Osví riu da cara dela.
- Você não sabe o que diz, garota.
- Nem você. Você invadiu a minha casa e isso é crime, garoto. Eu sei que meu pai vai acabar perdoando o seu um dia, mas sei que a minha mãe e a família dela não o suportam. Vocês tiraram quase quinhentos mil do meu pai. Meu pai emprestou, e o seu diz que pagou, mas não é o que confirma banco. O tio Araujo tá se esquecendo de nos contar alguma coisa.
- Que tio Araujo?
- Seu pai, oh idiota!
Osví ficou ofendido. Nenhuma riquinha mimada o chamaria de “idiota”, e apontou o canivete para Lisandra. Chega de ser bonzinho. Já agradeceu pelo rango, agora era hora de mostrar quem realmente era. Mas ela não se intimidou.
- Você quer me ameaçar com esse canivete? Ah, por favor, garoto! Até porque, – ela apontou para os vasos de plantas – caso você não tenha percebido, há câmeras nesses vasos. Nem todas estão com defeitos. – avisou Lisandra, com um sorriso forçado. Osví sentiu que ela estava ficando nervosa.
- Você tá ficando tensa, garota.
- Mas grito bem. Meu pai não vai gostar de ver você aqui, Vicente. Ou você esqueceu que ele é policial? Ele pode te...
- ELE É O QUÊ? Tô muito fodido!
- Você e seu pai, garoto!
- Ah, foda-se! – e escalou o muro. Ficou em pé e se despediu de Lisandra – Feliz Natal, garota. E aproveite a vida mansa que tem! – e pulou para fora do casarão. Levou um tombo, batendo seu joelho. Com muita dor, se levantou e montou a bicicleta. Ele tinha que ser rápido. Mas estava fraco para pedalar. Calçou o chinelo, tentou recuperar as forças por alguns minutos, sentado no selim, e quase caiu da bicicleta ao ouvir um corpo caindo no gramado. Era Lisandra.
- Quero ir com você. – com uma mochila nas costas e com seus cabelos crespos amarrados.
- Porra, você é burra ou o quê?! Não sou Vicente, não sou seu primo, não te conheço! Te manda daqui, garota!
- Não vou. E saquei que você não é meu primo desde cedo, seu pivete! – Lisandra foi intimidadora. Não havia mais sintomas de nervosismo na sua fala.
- Mentirosa. Você me tratou como se...
- Tratei porque eu realmente achei que fosse meu primo. Mas você perguntou das câmeras e eu achei muito estranho. E esse linguajar? Meu primo não fala assim. Ele é todo metido, mas é ladrão que nem o pai. Roubava meu dinheiro quando éramos menores. Fui educada com você pensando que fosse ele porque eu sou educada. E eu realmente fiquei nervosa porque comecei a perceber que...
- Porra, tu fala pra caralho, garota! – Osvi não aguentou tanto blábláblá.
- Comecei a perceber que você não era meu primo. – continuou, como se não tivesse sido interrompida. E sem rastro de medo ou insegurança. – Mas você, no fim, você e meu primo devem ser da mesma laia. Mas não é por isso que eu vou dar mole. – e tirou um facão de cozinha da mochila. – Posso ser riquinha e mimada, mas sei me defender. E muito bem. – apontando o facão para Osví.
- Se você sabe que eu sou pivete, por que quer ir comigo? Você tá é doida! Tem dinheiro pra caramba e tá reclamando?! Entra no teu casarão e vai ver viver a tua vida rica!
- Não! Eu já cansei disso. E não reclamo por ser rica. Reclamo por me sentir presa! Cansei de ficar em casa. Quero me divertir. E meu Natal foi um saco. Quero um rompante na minha vida. – e guardou o facão na mochila. O facão não era única coisa guardada. A mochila parecia levar mais alguns bagulhos.
- O que você tem aí nessa mochila? Garota, entra na sua casa ou nós dois vamos nos ferrar!
- Só quem tem a se ferrar aqui é você. Você só se ferra se for descoberto. – assegurou Lisandra, de braços cruzados, confiante.
- Você é louca, garota. Diz logo, o que você quer?!
- Quero que você me leve pra algum lugar com você. Qualquer lugar.
- Você não tem coragem. – testou Osví, curioso pra saber até onde iria a loucura da garota.
- Tenho mais coragem do que você pensa. – Lisandra deu um tapa nas mãos dele e se sentou no suporte da bicicleta, já que não tinha garupa.
- Garota, você vai se arrepender do que tá fazendo. – alertou. A adrenalina já tinha tomado conta do impulso criminoso de Osví. Ele esperava que Lisandra não estivesse de curtição com a cara dele, embora jamais tivesse visto uma garota mais sem-noção que ela. – Você pode não gostar pra onde eu vou te levar. Vai se arrepender. Você não passa de uma riquinha mimada.
- Não sou uma riquinha mimada. E você também vai se arrepender. Meu pai está a caminho. Eu contei a ele que era Brícia que estava aqui e que vou passar a noite na casa. Mas eu posso reverter a situação.
- Tá, mas você contou a sua amiga que tá querendo seguir um cara que você nem conhece?
- Contei que o Marcelo, bêbado, apareceu aqui em casa e me chamou para dar uma volta com ele e uns amigos. Não é a primeira vez que ela me encoberta. 
- Vão achar estranho esse tal de Marcelo aparecer no meio da madrugada...
- Não vão achar nada. Marcelo já fez isso outras vezes. Nós estávamos conversando lá pelas dez da noite, ele já havia dito que queria vir aqui comigo. Como você, já subiu o muro da minha casa umas duas vezes... E meus pais vão acreditar em tudo o que eu disser.
Vencido, Osví suspirou fundo e pedalou. Era desconfortável levar alguém no suporte da bicicleta, mas aquela era a única maneira de escapar.
- Qual seu nome de verdade? – Lisandra perguntou, como se perguntasse qual o destino da próxima aventura.
- É Osví. Você não sabe com quem tá se metendo, garota. Quando a gente estiver longe, vou te agarrar, te fazer de minha puta e você vai ser obrigada a me obedecer. – ameaçou, com dificuldade para pedalar e para mentir. Osví esperava a reação de Lisandra.
- Você não tem coragem. – disse a garota com o mesmo tom que ele. – Você pode ser um delinquente, como tem jeito que é, mas não parece ser do tipo assassino. E mesmo se fosse, com essa sua faquinha aí... Você não mata nem cachorro de rua.
- Eu não falei em matar. Falo em coisa pior. – Osví tentou espantá-la, com força nas pernas para pedalar.
- Ah tá. – Lisandra ainda não o levava a sério.
Sentindo o cheiro de shampoo no cabelo crespo de Lisandra na sua cara, Osví perguntou:
- Por que você tá fazendo isso? Você vai se meter numa encrenca e não vai ter volta. Você vai se arrepender. Escuta o que eu tô dizendo, vai se arrepender.
- Não vou me arrepender, garoto. Quero conhecer outra vida. E se você escalou o muro, entrou na minha casa e comeu do meu banquete de Natal, exijo algo em troca. E se você fez tudo isso sem saber no que iria dar, por que eu não posso fazer o mesmo? E quando eu me cansar, volto pra casa!
- Porque não é a mesma coisa! O meu mundo é diferente do seu. É um mundo criminoso. Mas tudo bem. Agora se prepare. Porque não vai ter volta. Nem que você se canse e queira voltar pro seu conforto. Não vai ter volta! 



Comentários

Victor!!!
Como fazes uma coisa dessas???
Deixar um super conto desses pela metade???
Caraaaa fala sério!!!!
Sem dúvida alguma, o melhor conto q vc já escreveu
Me prendeu de forma q nenhum outro fez.
Adorei a Lisandra, o jeito descontraído e zen dela!
Mt legal o desenrolar dos acontecimentos!
Aguardando! Não demora por favor!!!

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