Conto: Preton, o violão (parte 1)

Conto: Preton, o violão
Conto em homenagem ao Dia do Música (22/11)

Um sacrifício ficar em casa naquela noite de sexta-feira. Meus pais recebiam uns amigos de trabalho, e como eles não tinham interesse nenhum em conversar com um garoto de dezessete anos feito eu (e vice-versa), o que restava era eu me trancar no quarto. As provas finais estavam se aproximando, mas não eram minha preocupação. Em praticamente todas as disciplinas eu já estava aprovado. Química era a única que ainda me deixava receoso. O indivíduo que criou a maldita tabela periódica não devia ter muito senso de humor e menos ainda algo divertido pra fazer, mas eu tinha: aprender uma música nova no meu violão.
Um ano já havia ido embora desde que meu pai me presenteara, nos meus dezessete anos, com um Giannini de cor preta – acho que pra ressaltar a cor da minha pele - que eu logo o nomeei de Preton. Em menos de duas semanas meu pai se arrependeu da brincadeira, inventando qualquer motivo para me castigar e me tirar o violão. Aprendi a tocar tendo apenas algumas aulas com Fael, um primo mais velho, mas dois motivos o impediram de continuar me ensinando: ele teve que se dedicar mais à banda, a Atroz, na qual ele era o vocalista, e porque meu pai já não o queria me influenciando ao gosto pela música. Na Cidade de Luz dos Olhos, Atroz fazia sucesso estrondoso.
- Então pra que o senhor me deu o violão se não queria que eu tocasse? – eu questionava, confuso.
- Era pra você passar o tempo, não se viciar, Matias. – respondeu meu pai, com descontentamento. – Agora você não quer mais nada, só ficar tocando nesse violão.
Meu pai dizia, também, que eu estava estudando pouco por culpa das aulas que eu tinha com Fael. Entreguei a ele meu boletim recheado de notas azuis com um olhar vitorioso, entrei no meu quarto e me tranquei. Peguei o Petron e não o larguei mais. Jamais deixei de estudar, embora não tivesse a mínima ideia do que queria pra minha vida. Nenhum curso se encaixava no que eu gostava. Se dependesse somente de mim, acho que teria escolhido música, por isso eu faria um ano de cursinho, para optar a profissão certa. Ou tentar. O tempo, no entanto, corria e eu já tinha dezoito anos, e não poderia demorar muito a encontrar a carreira da minha vida.
Todo dia eu aprendia uma ou duas músicas novas. Por áudio do celular eu enviava gravações minhas a Fael, que se surpreendia com a facilidade que eu tinha em pegar canções complicadas e pela afinação da minha voz. Eu estava quase rouco e meu dedo criando bolhas, mas valia a pena. A melhor hora do dia era quando eu ensaiava uma música ou assistia a um show da banda Atroz ou da banda Musicais; da qual meu primo era fã. Durante um desses shows me encantei por outro instrumento: o baixo. É o tipo de instrumento que pode não ser reconhecido, mas é sentido, sem que se perceba. O magricelo e cabeludo Gil, da Atroz, tocava-o concentrado e fazia umas caretas engraçadas. Tornar-me um baixista era meu mais novo sonho. Gil até me deixou usar o baixo dele algumas vezes, e a vontade de aprender a tocá-lo aumentou.
Idiotamente, comentei isso com meus pais e foi o mesmo que nocautear o velho nos países baixos. Papai ficou desapontado. Ele queria que eu fosse engenheiro químico, como ele. Não, obrigado.
- Por mim, você nem pega mais nesse violão! – vociferou meu pai.
- Meireles, que exagero. Não vejo porque o Matias precise largar o violão. – discordou a minha mãe.
- Não é exagero, Elen. Só não quero que meu filho vire um Zé Ninguém!
Os argumentos do meu pai eram os mais primitivos possíveis: músico ganha mal, sequer é uma profissão e que ele não me educou pra isso. Eu sei que a profissão de músico tem suas dificuldades, mas qual profissão não tem? Papai também argumentava que o preconceito seria ainda por eu ser negro. Talento, nem que fosse mínimo, mas eu tinha – ou eu achava que tinha -, e não seria o Zé Ruela do meu pai que iria me fazer desistir de me aperfeiçoar no violão e aprender a tocar baixo. E, irritado com ele, naquela noite em que ele se reunia com uns amigos, fiquei no meu quarto e me joguei na cama. Até que recebi um telefonema de minha prima Ciça, a irmã de Fael, que estava chorosa por ter terminado com Leco, seu namorado. Com toda razão, Ciça o acusou de ser obsessivo, ciumento e de não largar do pé dela, mas ainda gostava muito dele. Contei que eu sempre o achei grudento, só não mencionava nada para não magoá-la. Não adiantou, e ela ficou magoou da mesma forma.
Ciça desligou o celular. Ela, ao terminar com Leco, dizia que o sentimento que ele tinha por ela não era amor, era obsessão e se sentia sufocada. Lembrando da conversa, subitamente, tive vontade de escrever. Peguei uma caneta e uma folha de papel do meu caderno, me sentei na cama e escrevi:

Isso não é amor, é obsessão
Sufocou o coitado do meu coração
Me prendeu demais e tirou minha paz
Eu desisto não suporto mais tanta pressão [1]

Soltei a caneta e me espantei com o que li: eram versos de um poema, com rima e rítmica. Foi a primeira vez que fiz um. Não era lá grande coisa, mas era um começo. Mais versos vieram na mente feito uma inundação. Peguei a caneta novamente e voltei a escrever e rabiscar. Continuei pensando na conversa com minha prima e terminei o poema. Li, mudei algumas coisas, reli e me assustei: estava longe de ser uma obra de arte, porém ficou bonito.
Peguei o Preton e tentei dar melodia aos versos que eu acabara de criar. As notas vinham e saíam da minha cabeça. Não estava ficando bom.
Ainda não.
Nada.
Até que... Pronto. Os versos e a melodia pareciam ter se criado vida. As notas Dó, Mi e Fá revezavam nas cordas do meu vilão.
- Matias, larga esse violão! Você está nos atrapalhando! – meu pai estava na porta do meu quarto, carrancudo. Incrédulo com a babaquice que eu ouvi, perguntei:
- E desde quando música atrapalha alguma coisa?
- Dependendo da hora, do local e da situação, atrapalha sim. E o barulho tá muito alto! – insultou-me meu pai. Pra mim, foi um insulto.
- Música não é barulho! – resmunguei, chateado. – Sério, vamos fazer um exame de DNA, porque tenho sérias dúvidas de que sou seu filho. – rejeitei-o, em tom de desafio e enfurecido. Minha mãe apareceu no quarto e sugeriu que eu fosse tocar na praça do conjunto de onde nós morávamos. Agradeci-a pela ideia, peguei Preton, o papel com o poema e desci, de cara amarrada, batendo a porta. Mas antes de sair, ouvi um amigo de meu pai pedir: “Meireles, põe uma música aí...”. 
Barulho?! Música não é barulho! Qualquer um sabe disso, até o amigo dele... Eu posso não tocar tão bem, mas não venha ofender a música desse jeito. Em que mundo meu pai vivia? Será que eu realmente era filho dele? Mamãe não implicava comigo porque gostava de ouvir músicas mais animadas, antigas, dos anos 80, e meu pai nem isso. Ele não ouvia rock, pop, samba, pagode, sertanejo, reggae, nada! Um pouquinho de música, seja o gênero qual for, tiraria aquela cara azeda dele.
Eram mais de dez horas quando cheguei na praça do conjunto. Estava acobertada por um vento frio e aconchegante. Quase vazia se não fosse por duas meninas sentadas em um banco, de mãos dadas; uma bem morena de cabelos encaracolados e outra branca como um algodão, de cabelos castanhos e curtos; e um rapaz baixo, de cabelos também encaracolados do outro lado, em pé, mais distante, falando no celular. Eu tinha certeza que não incomodaria as duas, quem sabe até faria a trilha sonora para o namoro delas. Já o garoto... Ele me lembrava alguém...
Sentei-me no chão frio, coloquei o papel próximo a mim e o minha sandália em cima para que o vento não o levasse. Lembrei-me da melodia que compus no meu quarto e a refiz várias vezes, até que eu a considerasse aceitável. Depois de muitas tentativas, era a hora de eu tentar cantar a música que eu criara. Pensei em avisar aos três que estavam na pracinha para que preparassem seus ouvidos, mas deixei pra lá. Olhei-os e vi que eles também me olhavam. As garotas, ainda de mãos dadas, me observavam com curiosidade. Enquanto o rapaz, com o celular no ouvido, com estranhamento.
“Vou ser expulso da pracinha, mas tudo bem. Não posso tocar em casa...”.
Então, toquei num ritmo mais suave e cantei:

Quer saber, cansei de você
Sai daqui, me deixa viver
Eu perdi tempo com você
Só eu sei o quanto eu sofri.

Acelerei os acordes e mudei as notas para o refrão:

Isso não é amor, é obsessão
Sufocou o coitado do meu coração
Me prendeu demais e tirou minha paz
Eu desisti não suporto mais, não, tanta pressão... [1] 

Apressei o término da música sem antes cantar a segunda parte e repeti o refrão, porque tive a impressão de que alguém me olhava atentamente, mas não levantei a cabeça para ver quem era e para não errar a letra. Quando acabei, ouvi fraquíssimos sons de palmas. Eram as duas garotas que me aplaudiam. A branquela me elogiou:
- Parabéns. Música bonita.
- Obrigado. – agradeci, timidamente.
O rapaz familiar que falava ao telefone não estava mais distante, e sim ao meu ladO. Olhava-me espantado, muito próximo a mim, com as duas mãos grudadas, como se estivesse orando.
- Tudo bem, eu paro de cantar. Não precisa rezar pra isso... – eu disse, largando o violão.
- Cara, essa música é sua? Bem, porque eu não a conheço... – o rapaz, ainda um pouco espantado, com seus cabelos cacheados balançado em seu rosto.
- Sim, fiz agora há pouco. – respondi e apressado, reiterei: - Mas eu paro de tocar, não se preocupe. – garanti, levantando-me e colocando o papel no meu bolso. O rapaz se levantou também, segurou a mão no ombro e disse num tom de ordem:
- Cara, avise seus pais que você vai sair comigo agora. – informou. Mas achei essa conversa suspeitosíssima, mesmo que o rapaz não me parecesse tão estranho.
- Olha, na boa, sem ofender, eu não curto caras... – tentei me desvirar, já imaginando que o cara estava dando em cima de mim.
- Quê?! Não, eu também não. – ele riu e me soltou. Eu o conhecia de algum lugar, só não sabia de onde – Desculpa. Mas você precisa vir comigo. Eu não moro longe.
- Mas o que você quer comigo?
- O que eu quero? - ele apontou para meu violão e para o bolso o meu bolso, respondendo: - Isto.




[1] FREITAS, CRIS. CANSEI DE VOCÊ. DIREITOS RESERVADOS.


  

Comentários

Unknown disse…
Que sacada de mestre ! Bela homenagem! Excelente texto! 👏👏👏
Thiago Cruz disse…
Quais surpresas aguardam Matias e Preton?
Ah temos que aguardar o próximo capítulo dessa aventura!
Um conto que trata de um de seus assuntos favoritos, música, não podia ser ruim.
Continua porque tá bom demais!

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