Conto: A despedida


- Vá, minha filha. Vá. – ordenou vó Nair, bondosamente. As mãos enrugadas de vida soltaram as mãos ingênuas de Jacira. Avó e neta sentiram o calor da despedida num abraço. As forças de uma senhora de 85 anos se rendiam à fragilidade de uma moça de 20 no aperto do colo. Os cabelos de nuvem de Nair sentiam a neta afagá-los enquanto seus olhares se encontravam nas lembranças e aprendizados que tiveram uma com a outra.
- Obrigado, vó. – agradeceu a neta. – Tenho que ir. Tenho que tentar, não é?
- Tem sim.
Jacira secou as lágrimas que insistiam em deslizar pela sua bochecha de maçã. Molhou o rosto no banheiro e penteou os cabelos pretos, lisos como o dá avó, mas a cor da experiência só viria anos mais tarde. Ela não iria sair pela Vila Madalena e nem encontrar Ced, o ex-namorado, com a aparência chorosa. Apenas alguns quarteirões os separavam, mas Jacira tinha de se apressar se realmente pretendia ter uma conversa com o rapaz. Talvez fosse a última.
A noite na Vila Madalena estava em festa: as bandeirinhas coloridas cobriam as cabeças de palha, as barracas de madeiras com joguinhos e comidas típicas, o forró junino e as roupas quadriculadas de arco-íris. O perfume quente do tacacá e do suculento vatapá a chamavam com os dedinhos salientes, mas ela não poderia desviar o caminho. Um vizinho chamou por ela, segurando um copo branco que esfumaçava doce – ela já sentia o cheiro do mingau de milho descendo na garganta.
- Desculpa, Vagner! Mas não vou poder ficar!
Desviando da animação dos vizinhos festivos, Jacira saiu da vila. Ouviu bronca de motoristas endiabrados nas ruas, e sentiu seus cabelos esvoaçando ao se aproximar da casa de Ced. Nara, a irmã dele, abriu a porta quando Jacira tocou a campainha. Ela pareceu aliviada quando viu a ex-cunhada do lado de fora e, sem falar nada, permitiu que entrasse. Sem cumprimentar os pais dele, Jacira seguiu direto para o quarto. Apesar de tê-los visto por segundos, eles também demonstraram estar contentes com a chegada da ex-nora. Um dos argumentos para não ir até a casa deles era de que não fosse bem recebida depois do “não” que Ced recebeu dela. Estava errada.
Em frente à porta do quarto de Ced, Jacira anunciou a chegada com dois toques e entrou. Uma mala fechada no chão e uma sacola de viagens aberta, cheia de roupas, na cama, que também quase não era vista por estar coberta de camisas, cuecas e produtos de higiene pessoais. Os cacheados de Ced caiam no ombro dele, soltos e sem brilho, descuidados. Os olhos seus olhos afundavam no vazio. O ex-namorado a olhou como se o vento tivesse entrado pela janela e voltou a colocar perfumes e desodorantes na valise. O ar-condicionado secava o suor que Jacira ganhara indo até a casa dele. Ela não poderia demorar mais.
- Você precisa me ouvir, Ced. – a voz de Jacira carregada de arrependimento se espalhou pelo quarto, mas ele fingiu que não ouvia. Ela tentou de novo. – Ced, eu preciso falar com você.
- Estou te ouvindo. – disse, secamente.
- Me perdoa. – disparou a garota. Porém, Ced ainda se concentrava na sacola de viagens. – Não tô pedindo pra gente voltar, tô pedindo perdão e tô pedindo que você me ouça. Eu te peço... que perdoe o meu egoísmo. – Ced, enfim, deu atenção a ela. – Quando você me chamou para ir viajar com você, pensei só em mim. Não lembrei que estamos juntos há cinco anos, que enfrentamos o preconceito dos outros só porque você é cinco anos mais velho que eu. Eu não levei em consideração as vezes que você ficou ao meu lado quando a grana apertou ou quando meus avós adoeceram; desde que meu avô ficou em coma você fez de tudo por nós, comprando remédios e servindo de médico particular para ele sem cobrar nada. Mas não é só isso.
Preparando-se para ouvir um longo discurso, Ced pôs algumas roupas em cima da mala, no chão, para sentarem. Ainda calado, eu ouviu o monólogo de Jacira:
- Nós dois sempre dizíamos que nos casaríamos, que viveríamos juntos... Aí, você recebeu essa ótima oportunidade de montar um escritório com seu pai, e você me convida para ir junto com você. Outra mulher, no meu lugar, aceitaria de imediato, embora não fosse, de fato, um pedido de casamento. Mas, insegura, recusei. Eu ainda não estava preparada, senti o peso e responsabilidade de uma nova vida com outra pessoa...
- Outra pessoa... – repetiu Ced, com um sorriso sarcástico.
- Sim! Fiquei assustada! Fui pega de surpresa! Ficar longe de você sempre foi algo inimaginável, mas não pensei que essa oportunidade viesse agora. Foi muito rápido. Realmente foi um susto. Mas o susto passou. Estava tudo na minha frente e eu não percebi.
- Como assim?
- Meus avós. A minha avó. - respondeu. Ced ouviu com mais atenção desde aí. - Além de tudo isso, eu também não queria deixá-los sozinhos. Você sabe o motivo. Eles só têm a mim e eu a eles. Mas vovó e eu conversamos hoje e ela me fez ver como eu estava sendo besta. Na verdade, nem foi preciso conversar tanto. Estava tudo na minha frente. Então... Me desculpa.
As palavras de Jacira não foram somente palavras. Ced sentiu que não. Ele iria perdoá-la. Tudo o que estava faltando para que ele viajasse tranquilamente era aquela conversa. Porém, a ex-namorada demorou tanto a chegar que Ced já estava quase perdendo as esperanças. Quase. A esperança só ainda existia porque ele, dias antes, visitou vó Nair para se despedir e ela garantiu que a neta mudaria de ideia. “Deixa comigo, meu filho”, garantiu a senhora, confiante.
“Eu vou te apresentar uma pessoa”, contou a avó Nair. E uma mulher de cabelos encaracolados, como os dele, entrou na sala com um copo de água nas mãos. “Essa aqui é a Éster. E eu tenho certeza que você vai gostar de conhecê-la”.
Porém, Jacira ainda não estava preparada para ficar calada.
- Me desculpa, Ced. Me desculpa por ter sido tão egoísta e...
- Jacira... – Ced a interrompeu. – Eu te perdoo. - ela abriu um pasmo sorriso - Mas tem uma condição.
- Qual?
- Viaja comigo.
Jacira não podia mais dizer “não”. Ou todo o seu discurso iria contradizê-la. Até porque... Ela queria dizer “sim”. No fundo, ela esperava por esse pedido. Não tinha ido à casa dele só para pedir perdão. 
- Mas você viaja hoje. Já está com as malas prontas. E ainda tem o meu curso de enfermagem...
- Eu estou com as malas prontas, mas viajo amanhã à noite.
- Amanhã? Mas amanhã?
- É, eu tentei te dizer isso, mas você não deixou...
- Mas e...
Com um gesto, Ced pediu que ela parasse de falar. Tirou da carteira um papel retangular dobrado e entregou à namorada.
- Você comprou uma passagem de avião? Pra mim? – ele assentiu, alegremente espantado. – E como você sabia que eu ia com você? Por que você se arriscou? – perguntou, desconfiada. As mãos dele brincavam na cintura dela quando respondeu com uma proposta:
- Passa a noite comigo. Vamos matar a saudade um pouco, e te explico depois.
- Uma noite com você, é? – as mãos dela também andavam pela cintura dele, trazendo-o mais para frente dela.
- Eu aceito como um presente do dia dos namorados. Você tá me devendo. – encerraram o falatório com um beijo.
Os lábios se encontraram num abraço úmido, desprovidos de limites. A resposta foi um beijo avassalador. As roupas que ainda estavam na cama foram para o chão. As roupas que iriam para a mala e as roupas que ambos vestiam. O tempo que ficaram separados se resumiu em nada ou em tudo, em uma noite. Eles precisavam era desse tempo, de um dialogo, de um ruído para acordar o sentimento que jamais adormecerá, ou menos ainda, se apagará. Mas do que eles precisavam mesmo era de um empurrãozinho.

Éster prometeu que não demoraria na farmácia. O remédio de seu Farias estava quase no fim, mas ela não esperaria que acabasse para comprar um novo. Enquanto isso, vó Nair cuidaria dele, como sempre fez desde que se casaram, ou desde seus primeiros meses de namoro. Ela foi até o quarto e se sentou na cama, ao lado do marido. Não era uma cama qualquer, nem um quarto hospitalar. Desde que vô Farias foi diagnosticado com Alzheimer, havia cinco anos, a vida dela e de Jacira se transformaram. Elas passaram a dedicar cada minuto de suas vidas para cuidá-lo. Alguns sobrinhos e netos apareciam para passar uns dias com o vô, porém nem todos tinham paciência com os lapsos de memória ou a dificuldade na fala. Os sintomas da doença se tornaram constantes. Vô Farias ainda gostava e conseguia caminhar nas manhãs ensolaradas, mas à noite se entregava ao cansaço. Aos 90 anos, ele ainda conversava, mas às vezes as palavras andavam sem nexo se esquecia das coisas mais recentes. 
Para piorar, uma pneumonia o atingiu e sua resistência já não era a mesma. Vô Farias tinha seu quarto como sua casa e sua neta e esposa como enfermeiras, além do apoio médico do recém-formado Ced. Havia uma enfermeira que reservava seu tempo pelo turno da manhã, mas vó Nair não largava de seu velho. Quando ela também adoecia, Jacira largava os estudos da faculdade de enfermagem para cuidar de seus velhos, pois desde que seus pais perderam a vida em um assalto, seus avós foram seus guardiões. E eles eram, também, a razão por Jacira não ir embora com Ced. Sair da cidade para morar com o namorado era o mesmo que abandoná-los. 
Vó Nair se levantou e se sentou em uma cadeira de plástico, ao lado de vô Farias. Ela tocou o rosto pálido e trêmulo do marido e sorriu quando os lábios formavam um outro sorriso. As poucas palavras ditas por ele só saíam depois de escutar a voz aveludada de sua companheira de mais de 50 anos.
- Lembra quando nos conhecemos, meu velhinho? Lembra? – vó Nair perguntou, recebendo uma piscadela ativa como resposta. – Lembra que nós dizíamos que não seríamos impedidos por ninguém de viver nosso amor? Lembra? Você enfrentou meu pai! Você dizia “Eu vou casar com a sua filha!”. E quando nós decidimos sair da cidade? Meu pai quase enfartou, coitado! – lembrava a avó, secando uma lágrima com seus dedos frágeis. – Nós enfrentamos muita coisa e muita gente. Enfrentamos o nosso medo. – sibilou. – E foi o que disse para nossa filha fazer: enfrentar o medo dela. Ela jamais iria se perdoar se não viajasse com o Ced. E eu sei que um dos motivos para ela não aceitar essa mudança, além de tantos medos interiores, éramos nós dois. Mas eu disse a ela que nós ficaríamos bem, que isso era bobagem! Jacira tem que viver a vida dela, assim como nós fizemos. Nós vivemos a nossa, não é? – e o beijou nos lábios. – Ela estava preocupada com você. Outra bobagem! Eu disse para ela ir, mas mesmo assim estava preocupada, por isso eu chamei a Éster aqui. A nossa comadre estava certa: ela é uma ótima enfermeira, de confiança e não cobra caro. Ainda assim, ela ficou com pé atrás, mas depois da conversa que tive com ela hoje... – suspirou fundo e deixou rolar mais uma singela gota. – Vai ser bom pra Jacira. Pra ela e pro namorado. Um médico e uma enfermeira juntos... Vai ser tão bonito! E eu não me perdoaria se ela deixasse de viver a vida dela por nossa causa.
Vó Nair admirava vô Farias com um jeito apaixonado. Ele a ouvia, tinha certeza disso. Mesmo com um olhar apático e lábios trêmulos, ainda era o belo e robusto rapaz que conheceu quando tinha seus 20 e poucos anos. 
- Eu vou cuidar de você até o fim, meu velho. Ah, não. Até o fim, não, porque para o nosso amor não existe fim. Existe a eternidade. Então, feliz dia dos namorados, meu eterno namorado!
Com muito esforço para mover os lábios e com dificuldade na voz, vô Farias perguntou:
- Você quer namorar comigo?

Vó Nair beijou vô Farias com um beijo que parecia ser eterno, que parecia ser uma despedida. Mas para quem se ama de verdade, o amor é ainda é só começo. 
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Obrigado aos meus amigos Joel Filho e Gisela Gomes pelas informações médicas.
E caso queiram comprar o Inseparáveis, livro de minha autoria, é só falar comigo!

Comentários

Me fizeste chorar.
Que texto lindo... o amor tudo supera, tudo constrói, a tudo sobrevive.
Que todos tenhamos um amor lindo e puro como esse, a ponto de ter alguém conosco até o fim de nossos dias!!!
Dayanne Rabelo disse…
Ai meu coração 😭🥰

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