Conto: Companhias de Natal

Meu rosto fedia à baba de Tulipa, uma cachorrinha miúda que eu ganhei de Natal. Acinzentada, com uns traços escuros, de olhos do tamanho das bolinhas de gude que meu pai colecionava quando tinha a minha idade. Ele, aos 7 anos, colecionava peteca e montava os próprios carrinhos de madeira. Eu, na mesma idade, assistia aos meus desenhos favoritos e baixava jogos no celular dele. Tulipa estava mais perfumada que muita gente. Na noite de véspera de Natal, ela cheirava melhor que meu tio, irmão da minha mãe. Ele só não poderia saber que eu o achava fedorento. Ganhei dele um boneco do Buzz Lightyear, que falava frases em inglês. Foi um dos presentes mais legais que recebi. Mas brincar sozinho não tinha graça nenhuma.
A nossa casa era grande demais para uma família pequena. Já havia passado da meia noite, do amigo oculto, dos abraços de “Feliz Natal” e todos se lambuzavam com as comidas feitas pelas minhas tias. Eu desembrulhava mais presentes, dessa vez dos meus padrinhos: uma caixa de coleção dos DVDs da Pixar (a família toda sabia que eu era fã) e um envelope com três notas de cinquenta reais. Meu padrinho preferia que eu mesmo escolhesse o presente. Mas eu ainda não estava feliz. Se não fosse por Tulipa, que rastreava o Buzz com o focinho, eu estaria me sentindo um nada no meio de vários ninguéns.
- Mãe... – deixei o envelope de dinheiro e os outros presentes em cima do sofá e cutuquei na cintura de mamãe. Interrompi a conversa com uma prima. – Mãe...
- Oi, filho. – respondeu, com um ar impaciente.
- Onde estão os meus primos? – perguntei, cruzando os braços.
- Seus primos? – mamãe não deve ter entendido a pergunta. – Eles estão ali. – e apontou para a cozinha e para o quintal. Eram meus primos mais velhos, de 17, 18 anos, e uma prima da minha prima, que eu conheci naquela noite; pensando bem, minha família não era tão pequena assim. Porém esses jovens mais pareciam tios. Tios distantes, porque meus tios me davam mais atenção que meus primos mais velhos.
- Eu tô falando dos meus primos, mãe. O Carmo, a Susu e a Riara. Por que eles não vieram?
Minha mãe entendeu, enfim, o que eu queria dizer com “primos”. Os três tinham a mesma idade que e eu, não nos largávamos. Ela lembrou que meus tios haviam me dito quando chegaram: Carmo e Susu estão passando o Natal com a mãe deles e Riara com a madrinha, porém meu tio me trouxe a esperança que talvez eles chegassem depois da meia noite. Mamãe pediu desculpas por meus tios como se ela fosse a culpada por meus primos não festejarem a noite de Natal conosco.
- Mas seus tios estão aqui, filho. A família toda está. – mamãe tentou argumentar com um jeito amável, mas pouco convincente. – O importante é que você está em família. – Você precisa sentir o espírito natalino, ver a graça que é está em família...
- Um Natal bem sem graça isso, sim. – e me distanciei resmungando. – Eu ainda não tô sentindo esse espírito natalino...
Me sentei ao lado da única criatura da família que se importava com a minha existência: a cinzentinha Tulipa. Coloquei-a no meu colo e vi que ela mordia um papel. Era um envelope. O envelope com dinheiro que meu padrinho me deu de Natal. Tulipa rosnava, eu tentava puxar. Se eu forçasse, ela poderia rasgar. Pensei em ser mais carinhoso, mas ela não me deu tempo. Pulou do meu colo e fugiu. Corri pela cozinha, quase derrubando meu avô com uma fatia de pudim e a cerveja de um dos meus primos adultos. Nenhum deles pareceu se importar ou percebeu que eu quase os esbarrei. Tupila desviou da árvore de Natal e passou pela porta entreaberta. Alguém havia deixado o portão do quintal aberto, mas eu não tinha tempo para saber quem foi. A cadelinha passou pelo portão e dobrou à esquerda. A cidade madrugava no silêncio natalino. Tive medo de ela se perder no meio da noite.
Tulipa parou de correr. Ela cheirava os pés descalços de um menino. As roupas dele eram surradas, sem mangas compridas, um aspecto de velhas. Não devia estar vestido para comemorar o Natal. Parecia estar perdido numa rua deserta. Mais perdido do que eu na festa de Natal da minha casa. A minha cadelinha não era mais a preocupação. O garotinho, que tremia de frio, colocou Tulipa no colo. O envelope se fechou na mão dele. Era como se a tivesse enfeitiçado só com o olhar. Ele me estendeu a mão com o envelope e perguntou se era meu. Depois que o guardei no bolso, o menino me perguntou:
- Essa cachorrinha é sua? Ela é bem bonitinha. – cheirava o focinho de Tulipa.
- É minha. Ela saiu correndo feito doida.
- Ela só queria brincar. – e me estendeu Tulipa. Quando eu estava quase recebendo a cadelinha, o menino teve que se equilibrar para não ser derrubado por duas miniaturas de gente. Um menino e uma menina menores que ele. Não deveriam ter mais de 3 anos. As roupas também não eram de festa de Natal. E deveriam tá morrendo de frio.
Os fios claros dos cabelos esticados pelo vento foram divididos pelos três. Tinham o mesmo rosto fino, de lábios que formavam um botão, de tão pequenos. Os baixinhos, porém, tinham feições idênticas.
- São seus irmãos? – perguntei, segurando Tulipa no colo.
- São sim. – respondeu o menino mais velho e tão novo quanto eu. Os menores me olhavam curiosos.
- Eu sou o João! – o menininho apontava o dedo para o alto, aos pulos, como se respondesse uma pergunta à professora.
- Eu sou a Juju. – a menina o imitou. Eles eram engraçadinhos. – Ele é nosso irmão, o Julí! – olhava para o garoto mais velho. - Todos nós temos nomes que começam com J, percebeu?
- E nós dois – o menor apontou para ele e para a irmã – somos gêmeos. Somos gêmeos! - Eles deveriam ter uma pilha que se carregava automaticamente.
- Ele já deve ter notado isso. – o irmão mais velho interveio, sem graça.
- Notei sim. E eu sou o Yuda. – me apresentei.
- Legal. Agora vamos embora. – Julí acenou para mim, como um "tchau", puxando os irmãos pelas mãos.
Senti como se meus primos da minha idade tivessem ido embora mais uma vez. Eu não queria que eles fossem embora. Eles viravam às costas quando desejei gritando:
- Feliz Natal pra vocês!
Juju largou da mão do irmão e correu até mim:
- Você já viu o Papai Noel hoje? Eu queria ganhar uma boneca... – suspirou, um beicinho tolo. – Mas também queria comer uma fatia de bolo. – Juju massageava a própria barriga.
- Vocês ainda não tiveram a ceia de Natal? – eu me assustei com a probabilidade de ouvir um “sim”.
- Comemos as torradas que a nossa mãe fez pra gente. – explicou Julí, coçando a cabeça. - Mas foi bem cedo.
- E a mãe de vocês? Por que vocês não estão passando o Natal com ela?
- Nós já passamos. Mas preferimos dar uma volta – esfregando as mãos umas nas outras, desviando os olhos de mim.
- Vocês estão com frio. – observei, vendo que eles se encolhiam. – Não querem entrar na minha casa?
- Tem comida na sua casa? – Juju perguntou, com os olhos arregalados.
- E tem binquedos? – João me engolia de curiosidade.
Brinquedos. Era isso. Meus pais me diziam para eu não falar com adultos que eu não conhecia. Com crianças eu achava que não haveria problema. Elas eram crianças como eu. Que mal havia?
- Do que vocês gostam de brincar? – a minha pergunta arrancou um sorriso ansioso dos gêmeos. E um sorriso discreto no rosto de Julí.


Tulipa desceu correndo do meu colo em direção à cozinha. Mamãe sorriu aliviada quando me viu entrar, mas depois me olhou meio estranha. Ela deve ter notado que eu estava feliz. Me arrastou para um canto e, mais assustada que nunca, perguntou:
- Onde você estava, Yuda?
- Estava lá fora. Tulipa fugiu de mim e eu fui atrás dela. – respondi. Ela não parecia ter notado os irmãos J. Irmãos J... Era um bom nome para os três irmãos, não é? 
Eles estavam atrás de mim, encantados com a decoração de Natal da minha casa. – Mãe, esses são Juju, Juli e João. Conheci eles lá fora. – contei, animado. – Os dois menores são gêmeos, sabia?
Mais uma vez, ela não me ouviu direito. Mamãe estava ficando surda e nem era tão velha.
- Oi?
- Vocês podem comer algum doce, se quiserem. – fui educado, mas eles nem se moveram. Julí me só me olhava, como se estivesse me analisando. Ou me admirando. Os dois menores correram até os meus presentes abertos.
- Você está falando com quem, filho? – mamãe perguntou. Deveria ser uma brincadeira. Além de surda, estava ficando cega.
- Dos meus amigos, mãe. Os irmãos J. Eu os conheci lá fora. Não tem problema de eles brincarem comigo, não é?
Mamãe me trouxe para junto dela com um ar de preocupação.
- Do que você está falando, filho? De quem você está falando?
- A senhora realmente não me ouve... – concluí, com tristeza. Me soltei, mas ela me puxou de novo.
- Olhe, sei que você deve estar com saudade dos seus primos, mas vá dormir. Amanhã eles veem aqui. Você deve estar com sono. – tentando ser gentil. Mas ela sempre me obrigava a dormir cedo.
- Por que, mãe? Qual é o problema de eu brincar com eles?
Amarrei a cara. Mamãe não poderia me proibir de brincar. Seria injusto.
- Meus primos estão com a família deles. A mãe desses meninos já deve ter dormido faz tempo. Eles estão sem ninguém pra brincar, que nem eu.
- Mas é esse o problema, filho! – mamãe tremia de medo. Que exagero! Por que tanto medo? – Esse é o problema! Eu não sei do que você está falando. Não sei de quem você está...
- Você e o papai nunca sabem do que eu tô falando! Nunca!
De repente, todos os meus primos e tios me olhavam tão assustados quanto mamãe. Papai chegou para ver o que estava acontecendo. Os três irmãos estavam sentados no chão, segurando meus brinquedos novos. Virei para meus pais e gritei:
- Eles vão brincar comigo! Vocês vivem dizendo que Natal é pra se passar com a família, não é? Você me disse agora há pouco, mãe. Disse que isso é o mais importante. E eles são irmãos. Então são uma família, não são?
Mamãe e papai ficaram sem resposta. Eles olhavam para os lados, como se tentassem encontrar algo a dizer. Ou encontrar alguém que pudesse explicar o que estava acontecendo. Ou do que eu estava falando. A minha nova prima (que não era prima) conversava com um dos meus primos nerds. Eram os únicos alheios à minha indignação.
Julí se levantou do chão, segurando o meu Buzz Lightyear. Era como se nunca tivesse visto um brinquedo antes.
- Cara! Você tem o astronauta! Tem o cowboy também?!
Era uma pergunta dessas que eu esperava ouvir. Meus pais que ficassem com cara de bobos, como se tivessem visto um fantasma. Porque aquelas crianças surgiram sei lá de onde para brincar comigo. Parecia até que só eu as enxergava. Meus pais, como sempre, se faziam de cegos. Os irmãos J eram o meu espírito natalino. E brincar era o que iriamos fazer, mesmo que todos os meus familiares como se eu tivesse fazendo ou falando alguma idiotice.
O meu Natal estava só começando. 

Comentários

Iranise disse…
Que lindo, a imaginação de uma criança é mágica!
Dayanne Rabelo disse…
🥰 queria ter a companhia dessa poderosa imaginação que muitas crianças já tiveram um dia... esse conto me fez lembrar de um filme que eu amava assistir no SBT, chamado Dayo. Era uma grávida que voltava a enxergar e conversar com seu amigo invisível da infância chamado Dayo (Ellijah Wood)... que gostoso é aquele filme, tão gostoso quanto essa crônica e a vontade de querer ter um amigo imaginário mesmo nos tempo de hoje.

Ah tio vitu, mergulhar nos teus textos tem sido um grande prazer mesmo. Obrigada por ter os escrito e postado.

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