Conto: O espelho





O vestido roxo talvez não fosse o mais bonito de Jussara. Mas sua mãe, dona Branca, dizia ser o contrário, e que cabia melhor na filha. Pela primeira vez, Jussara, depois de muito tempo, acreditou nas palavras da mãe. Tirou o vestido do armário. Posava em frente ao espelho com a roupa ainda no cabide, como se a estivesse usando. O sorriso forçava uma felicidade que tentava existir, que fingia sinceridade.
Fechou a porta. Pôs uma canção dançante na playlist enquanto se vestia. Jussara escolheu um sutiã preto, embora não achasse necessário. Achava seus peitos discretos e desgraciosos. Mas aquele sutiã merecia ser usado. Estava meio velho. Assim como o batom preto, que estava a alguns meses do fim da validade. Não gostava de se maquiar. Não. Não sabia se maquiar. Nas poucas vezes que se arriscava, via-se no espelho depois borrava todo o rosto, retirando a maquiagem. Não apenas com um lenço de papel, e sim com algumas gotas que rolavam no seu rosto. Por mais bonita que estivesse, tinha raiva do espelho, desconfiava se a sua aparência a agradava. A garota no reflexo, para Jussara, era uma encenação. Uma mentira. Ou uma verdade. A verdade era que se achava feia, ridícula. O batom, o pó, o blush, a base, o rímel, enfim, deixam-na mais estranha do que o habitual, na opinião dela.
Mas naquela noite não. Afastou os pensamentos negativos, como quem arrasta a poeira pra debaixo do tapete. Vestiu-se do roxo com tecido, do doce aroma e da textura disfarçada no rosto. A cor do vestido brincava com a cor da sua pele. Pintou os lábios de vermelho. Nas orelhas trincou um brinco e um perfume que esporadicamente usava – ganhara de aniversário, porém o considerava um aroma que banhava um corpo feminino transbordante de sagacidade, não o seu. Mas estava pensando diferente naquele dia. Borrifou perfume na nuca, no corpo e espalhou nos braços.
Dançava ao som da canção. Fechava os olhos e dançava. Dançava. Livre. O mundo não mais existia. Não mais havia luz, nem escuridão; nem o vazio, nem a plenitude. Nem somente Jussara, num ritmo sereno e leve, sem relação alguma à canção que ouvia, somente ao seu próprio desafio de existir. Não de viver. De existir. A sua existência era um desafio.
A empolgação varreu qualquer poeira do chão de Jussara. Dali a uns dez minutos iria encontrar seus amigos do trabalho para a comemoração de aniversário de um deles; Tuco, o novato. Jussara tinha uma queda por ele. Os outros apostavam que era recíproco, porém ela não acreditava que um rapaz tão legal como Tuco se interessaria por uma “garota feito eu”, como se questionava.
Uma raridade, seus amigos convenceram-na a irem à pizzaria e depois a uma boate. Jussara não frequentava boates. Sem motivo aparente, negava frequentar casas de shows que fosse obrigada a dividir espaço com outras tantas pessoas. Sentia-se sufocada, mas se daria uma chance naquela noite. Pelos seus amigos. Por Tuco. Por si. 
Bateu à porta do quarto do irmão – único e mais velho -, Rúbio, pra saber a opinião sobre o vestido. Ele era um irmão bacana, compartilhavam momentos divertios, Jussara achou que seria “uma boa” mostrar ao irmão o antigo vestido novo.
O irmão jogava vídeo game, junto com o primo Berto, um garoto de topete bagunçado, que Jussara reservava um espaço no coração. Ambos a olharam com estranheza, mas somente Rúbio desenhou uma careta no rosto. Jussara e Berto quase não se viam. Contudo quando se encontravam conversavam e riam de tudo. Papos descontraídos. Às vezes, Jussara não puxava assunto para não atrapalhá-lo. Ele sempre estava lendo ou escrevendo algo num caderninho. O esverdeado dos seus sugestivos olhos eram um diferencial entre todo o parentesco, e nunca arrumava o cabelo, formando um topete engraçado. Mas não só com a sua aparência física. Berto era um primo reservado, inteligente. Nas reuniões de família era distante, como Jussara, mas na companhia dela era loquaz. Gostava, também, de ouvir as histórias da prima. Não entendia por que ele ainda se prestava a ouvi-la. Jussara pensava ser apenas por gentileza.
Jussara ficou surpresa ao vê-lo com Rúbio. Ambos também só eram ligados pelo vínculo familiar. Não eram próximos. Com uma pontada de nervosismo, perguntou:
- Como estou?
Os dois se viraram para olhá-la, mas somente Rúbio respondeu:
- “Como estou?”. Está bem esquisita. Vai sair pra algum lugar: Porque se for, troca de roupa. Não ficou nem um pouco legal em você. – e se virou para frente da televisão. Berto o mirou atônito.
Jussara bateu a porta. Correu para o quarto. Trancou-a. Tirou o vestido e o jogou no chão. Chutou-o para o lado. As lágrimas borraram, sujaram a maquiagem que demorou cerca de 20 minutos para fazer. A cama a aparou pelos braços e abraçou. Estava acostumada a esse abraço. Respirou a esse afago e mergulhou no choro. Jussara rasgou todo o seu vasto pessimismo na secreção límpida. Rúbio estava certo: pra que tanta maquiagem, vestido, perfume...? Jussara continuava feia, horrenda, um mico. Um vexame. Com certeza, seus amigos de trabalho pensariam da mesma forma. Ririam na cara dela. Tuco gargalharia. Afinal, pra que ir a esse aniversário? Para dar mais motivos para esfregarem verdades na cara dela? Seria melhor se despir e ficar em casa.
Afogou-se no travesseiro. Na maciez das penas, do tecido, na brancura do seu breu. Jussara não sabe por quanto tempo se afogou no choro. Sabia que estava fazendo papel de trouxa. Concordava com Rúbio. Nem no vestido mais belo de todos os alfaiates Jussara ficaria bela. Jamais se viu dessa forma. Nunca ouviu um Você está linda de ninguém, só oposto. Quando criança, na escola, os colegas a debochavam; ouvia que seu cabelo era feio, a cor da sua pele, seu corpo... Tudo. Mais velha, já não ouvia tanto. Quando ocorria de ouvir um elogio, tinha certeza que era por polidez. Só queriam agradá-la.
Alguém bateu à porta, sabe-se lá quanto tempo depois.
- Jussara, você tá chorando?
Era a voz de Berto.
- Tá chorando pelo que Rúbeo disse? Não liga pra ele...
- Ele tem razão. – gritou Jussara. – Eu tô feia! Tô horrível!
Berto suspirou em lamento.
- Eu sabia que você diria isso. Bom... – um papel dobrado passou por debaixo da porta. - Escrevi isso aqui já tem um tempo. Só não sabia como ou quando te entregar. Acho que... Bem... Você vai entender. Agora vou indo. Tchau!
O silêncio pesou.
Berto deixou uma folha de caderno rasgada. Jussara não entendeu absolutamente nada. Ficou absorta. Os soluços ainda pulsavam seu pescoço. Timidamente, desceu da cama. Pegou o papel. Desdobrou-o. Abraçada ao travesseiro molhado, pegou o bilhete dobrado e leu:

Olhos

A tua beleza não depende do teu espelho
Se o teu batom é vermelho
Ou do tom da tua pele.

A tua beleza não vem dos teus olhos verdes
Nem o que diz aquela gente
Nem o fio do teu topete.

A beleza pode ser tudo isso
Ou pode ser nada disso.

A tua beleza é o sorrir da escuridão
É transformar um velho pão
Em um banquete.

A tua beleza é sorrir sem julgar
É cobrar sem multar
Um ombro ausente.

O belo é exercitar a empatia
É não cuspir a agonia
De um sofrimento alheio.

O belo é saber compreender
Que ninguém é igual a você
E isso sim é belo.

Beto Medeiros

Não dê ouvidos ao teu irmão.
Saia e se divirta!

O papel caiu da mão de Jussara. Leu e releu o poema várias vezes. Muita coisa a assustava. Nunca soube que Berto escrevia poemas. De tantas conversas que tiveram, isso ele nunca contou. Além da letra cuidadosa, delicada, como de uma professora de ensino fundamental. Porém o que mais a admirou foi o que Berto disse depois de colocar o papel debaixo da porta: Escrevi isso pra você já há um tempo. Só não sabia como ou quando te entregar. Acho que... Bem... Você vai entender. Então, ele escreveu pra ela? Havia referências sobre ela e também sobre no poema.
Jussara não estava acreditando. Queria mais explicações.   
Cadê você? Estamos te esperando, o celular binou. Era mensagem que Jussara recebeu de Tuco.

- Será que ela ainda demora muito? – inquiriu Rosana, lendo o cardápio da pizzaria pela terceira vez. A fome gritava no estômago.
- Espero que não. – respondeu Bruno. – As pizzas estão quase chegando.
- Mas ela vem mesmo? – Rosana largou o cardápio.
- Espero sinceramente que sim. – respondeu Tuco, ansioso. A festa não teria graça sem Jussara. Rosana e Bruno riram dele. sabiam que Tuco era doido por ela. – Ela chegou e...
Tuco ficou de queixo caído. Se levantou, sem piscar, para receber Jussara. Mal podia acreditar que, ainda mais do que o normal, ela estava...

- Linda! Você está linda, Jussara!! 


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[1] Poema criado por mim, no dia 29/07/18, “iluminado” a uma conversa que tive, separadamente, com dois amigos: Tassi Santos e Patrick Corrêa.

Comentários

Tassiane Santos disse…
Que conto lindo e que acima de tudo demonstra sensibilidade pra descrever sentimentos tão fortes. Parabéns 😘😘
Patrick Corrêa disse…
Nossa, que lindo! Fiquei envolvido com o conflito da Jussara, fiquei envolvido com as tuas palavras e a forma que conduziu o conto! Parabéns pela bela produção, me orgulho muito da nossa conversa ter te inspirado e eu poder fazer parte disso 😘
Olivio Gomes disse…
Conto fascinante, capaz de prender nossa atenção enquanto esperamos o desfecho da história.
Unknown disse…
A sensibilidade da escrita te faz capaz de perceber e decifrar o mais profundo sentimento, caro escritor.
O sentimento do amor aos livros, a leitura e a facilidade de fazer com que o leitor se sinta nos contos.

Parabéns pelo lindo trabalho.
Unknown disse…
Você é a pura personificao da sensibilidade e do talento.
Lindíssimo
Thyago Santos disse…
A tema do conto é universal que, acredito eu, é quase impossível alguém não se identificar com a personagem. E a mensagem que é deixada no poema e no final é muito boa. é exatamente isso.
Quantas e quantas pessoas por aí não precisam ler esse conto? ler esse poema? ouvir essa mensagem?

Renan medeiros acertou quando disse ser leitura obrigatória.
Paulo H. disse…
Lindo texto, parabéns... Sua escrita e impecável...😘😀😁

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