Crônica: Sobre representatividade negra e Rupaul's Drag Race

Não sei se vocês já leram os contos da FamíliaMedeiros, divulgados aqui no Outras Palavras há algumas semanas, mas quem leu deve ter notado que a revisora textual de toda a produção foi Tassiane Santos, uma pessoa que eu tenho orgulho em chamar de amiga. E orgulho também em ter lido o texto que ela produziu há pouco mais de uma semana. É um texto que todos devem ler. Todos!
Tassi se expressa muito bem na escrita. E é um ser humano que me inspira, me ensina...
Vocês vão entender um pouco do que eu tô falando... Agora:

“Sobre representatividade negra e Rupaul's Drag Race.

        Eu sempre tive muitos problemas com relação a minha aparência. Sempre foi difícil para eu relacionar o modo como eu me vejo com algo bonito.
          Quando eu era criança costumava assistir as competições de Miss Universo junto com a minha mãe e infelizmente isso nos derrotava. Minha mãe via aquelas modelos bem magras, ricas e com o cabelo perfeito, sem poder imaginar um dia como uma mulher normal seria igual a elas. E eu via os desfiles procurando desesperadamente por algo que me representasse, alguém com quem eu pudesse sonhar que seria igual a mim. Fui percebendo aos poucos que não era só o cabelo ou as roupas, mas tinha a ver com a cor também. A pouca representação de mulheres negras me deixava frustrada. Comecei a procurar representatividade em tudo: filmes, novelas, séries, clipes musicais. Eu queria ver alguém sobre a qual eu pudesse dizer: "Nossa, ela se parece comigo". Mas as coisas não foram ficando tão fáceis assim. Mulheres negras eram mínima ou forçadamente colocadas em evidência, deixando a criança que fui confusa sobre padrões e comercialização. Meu pai sempre colocou em alto e bom som o descontentamento com a televisão exclamando: "Sim, não vai ter nenhum negão aí mesmo?". E eu achando que era normal, sendo que só hoje em dia entendo que isso também era uma forma de protesto.
        Fui crescendo com parte da minha família branca reclamando do cabelo "pixaim" da minha avó negra e fui passando pelos processos de autodestruição da própria imagem tentando ser outra imagem que supostamente agradava mais. Alisei meu cabelo, usava determinados tipos de roupas, comecei a usar acessórios para me enfeitar. Nada adiantou, pois o desmerecimento, as humilhações e o decaimento da minha autoestima me levaram ao fundo do poço, a ponto de eu odiar com todas as forças a minha aparência e ficar com vontade de vomitar ao me olhar ao espelho.
      Eu queria ser outra pessoa. Para mim, não era suficiente ser eu. Tudo isso, claro, se misturou com o início da minha depressão e aprofundamento da ansiedade aos 13 anos. Cheguei aos 14 e aos 15 como uma personagem criada para ser a cópia das minhas colegas mais bonitas e não para ser verdadeira com a minha realidade. Tive um momento de não reconhecimento e de viver várias vidas em conflito dentro de mim.
       Foram necessários anos e anos, conversas, discussões e conhecer mulheres incríveis para que eu pudesse iniciar meu processo árduo de mudança interna e externa.
      Amor próprio, entendimento sobre as suas raízes e aceitação da sua cor e beleza não são coisas que aprendemos ao raiar de um dia. Leva-se tempo, coragem, lágrimas e arrependimentos.
     Conversar com mulheres negras próximas a mim me fez ver a representatividade que eu sempre procurei na televisão. Eu me inspirei em mulheres verdadeiras, com histórias iguais a minha que estavam ao meu lado e eu não queria ver, pois meus olhos estavam abertos durante todos esses anos, mas voltados para o lugar errado.
     Durante esse meu aprendizado, conheci outra coisa que estava fora do meu padrão: as drag queens. Comecei a assistir Rupaul's Drag Race com meu primo e percebi que, além de não conhecer nada desse mundo, eu também era abarrotada de preconceitos. Fui assistindo e assistindo, e em meio disso percebi uma coisa.
      O fato era que eu sempre via o programa quando estava triste, me sentindo só ou infeliz por "n" motivos. E acabava que ver Rupaul me deixava mais tranquila, mais de bem comigo mesma. Refleti sobre o que isso queria dizer e a resposta não poderia ser outra: eu também estava sendo representada ali.
     É estranho uma mulher cisgênero relacionar sua vida com a de homens que se vestem como mulheres? Talvez seja. Porém para mim era mais como se eu entendesse. Afinal, todos eles ali também, de uma forma ou de outra, passaram por momentos de diminuição e violência, seja pelo seu trabalho, pela condição sexual, pela aparência ou qualquer outro tipo de preconceito. Eu via pessoas lutando contra seus próprios monstros para servir a beleza e a arte na demonstração de que podemos ser quem quisermos ser por mais louco, belo, horrível ou encantador que pareça.
      Eu ainda estou em processo e tenho certeza que vou, em algum momento, falhar comigo mesma. No entanto, eu tenho consciência das minhas imperfeições e de quanto isso me faz única no mundo. Tenho orgulho da cor e da história que eu carrego em cada fio de cabelo crespo que nasce na minha cabeça e da arte estranha de ser eu mesma que eu carrego no meu peito. Porque o estranho é só mais uma maneira de se representar nesse mundo.
    E lembrando: "se não pode se amar, como pode esperar amar outra pessoa? Posso ouvir um amém?’.

Tassiane Santos”.

Tassi, tu és foda! Não se atreva a sumir de mim. Jamais!

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Comentários

Tassiane Santos disse…
Victor, obrigada por postar meu texto. Grata pela confiança que tens em mim. Te agradeço também por ter me lembrado como é bom escrever (mesmo que eu ainda esteja a anos luz da tua qualidade). Você sempre me inspira como escritor e como pessoa. Beijos, te amo, seu lindo 😘
p.s.: A ilustração é da @partes.art
Unknown disse…
Genteee, Que espetáculo de texto.
Jogos disse…
Extremamente lindo, coerente e aplicável!

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