Conto: Pele

Revisão textual: Tassiane Santos


O milho estourava na panela. Muita pipoca. Telma não gostava de pipoca de micro-ondas: o gosto lembrava plástico – não que já tivesse comido plástico, mas parecia. Derramou toda a pipoca no balde do Star Wars, banhou-a de manteiga e uma pitada de sal e o agarrou no colo. Ainda havia uma latinha de refrigerante na geladeira. Preferia Coca-Cola – ou um vinho –, mas só tinha Fanta Uva.  
Certo. Agora sim. Sentou-se no sofá, de shortinho e uma blusinha de quando ainda era uma garotinha, pronta pra assistir a uma série na Netflix. Seria seu programa para aquele sábado. Havia algo melhor? Até havia. Porém era a opção mais sensata.
O toc toc na porta não a deixou apertar o enter no notebook. Com a preguiça agarrada nas costas, nas pernas, no pescoço... No corpo todo, Telma se levantou para atender à porta. Era Melissa. Melissa. Telma nem a cumprimentou. Sabia o que a amiga queria. Voltou ao sofá e esperou o choro.
– Por que tu ainda não tá pronta, amiga?
Melissa exalava perfume. A maquiagem parecia ser de uma profissional. Melissa, geralmente, se borrava no batom, mas se vestia bem. Chamava atenção pela elegância. A demora em se arrumar valia a pena. Telma sempre dizia que se fosse lésbica namoraria a amiga. Sabia o motivo desse banho de beleza naquela noite. Era aniversário de Melissa. Seria comemorado na boate Brejas, a fuga preferida da amiga. Mas Telma já havia dito que não iria e não mudaria de ideia. Nem por um balde cheio de pipoca. Nem por dois baldes. Nem por uma taça de vinho. Ah, por uma garrafa de vinho... Não, nem por isso.
– Não tô pronta porque eu não vou, amiga. – respondeu Telma, vestida de tranquilidade, mas com o demônio no couro.  
– Só tu tá faltando, Telma. Por que tu não vais? – insistiu Melissa. Telma orava por mais paciência, mas a amiga pedia por uns tapas.
– Melissa, meu amor, eu já te expliquei o motivo. Agora me deixa voltar pra minha pipoca e...
– Amiga, por mim – persistiu Melissa. – Pelo meu aniversário. Só hoje. – como um bebê prestes a abrir o berreiro.
Essa insistência foi a gota d´água. Mas Telma havia prometido a si mesma que não ia se estressar, mesmo que a amiga merecesse uns belos tapas pra parar de ser besta. Tentando ser didática, irônica e sincera ou talvez apenas se segurando pra não perder a paciência, levantou-se e se aproximou de Melissa. Telma puxou o braço da garota e apontou para a mão dela. Em seguida, apontou para sua própria mão.
– Tá notando a diferença, amiga? – Telma, numa expressão circunspecta. – Tá notando? – Melissa entendeu. Estava pronta pra ouvir. – Pois é. É uma diferença e tanto. Disso tu já sabes e eu já te falei. Tudo bem, eu acho que não expliquei realmente o porquê de eu não querer ir pra sua festa.  
– Tu só disseste que era por uma situação de racismo... – lembrou Melissa, sentando-se no sofá. Telma concordou e pegou na mão da amiga.  
– Isso. E foi comigo. – contou Telma. Melissa ficou boquiaberta. – Na última vez que nós estivemos lá, lembra, no Brejas? Tu saíste mais cedo. – Melissa aquiesceu – Então, um garoto queria ficar comigo. Ele era muito bonito, por sinal. Nós ficamos. Ele até que beijava bem. A gente começou a conversar, agarradinhos. Até que uns amigos dele chegaram. Ele me soltou na hora. Pensei que ele estava traindo alguém, o que já seria errado, não é? Pois é. Os amigos dele me olharam torto. Uma amiga mais ainda, como se eu fosse uma esquisita. Não era a primeira vez, tu sabes. Mas não é por não ser a primeira vez que eu me acostumei ou que eu releve. Não. Não mesmo.
– Eu não sabia disso, mas...
– Calma. Ainda não terminei. Me ouve. – pediu Telma, mais calma. Não era o tipo de lembrança que gostava de reviver, mas era necessário. – Então... – respirou fundo e continuou – Os amigos do rapaz saíram e a amiga disse algo no ouvido dele, depois saiu também. Ele tentou me beijar, mas recuei. Pedi uma explicação. Fiquei sem entender aquela cena. Ou melhor, eu já supunha, mas...
– E o que ele falou?
– Que ele não estava acostumado a ficar com meninas “assim” como eu, que ficava com outro “tipo” de meninas. Eu perguntei: “Assim como? Pretas?”. Meio sem graça, ele disse que sim. Disse que gostava de meninas “assim”, mas a família dele não e nem os amigos. E aquela garota era ex-namorada dele. Nem te falei, não é? A menina parecia um Miojo de tão amarela. Eu fingi que não estava chateada e insisti pra ele me falar o que ela cochichou no ouvido dele. E sabe o que foi, amiga? Ela disse: “Sou mais eu do que essa pretinha aí”. O cara disse rindo. Rindo. Ele disse depois: “Mas não liga pra ela não. É ciúme bobo” e tentou me beijar. Não aguentei, Melissa. Dei um tapão nele. Os amigos dele viram. A menina, a tal ex, abriu a boca pra tirar satisfação, mas eu não deixei:
"Tu cala a boca, oh branquinha burguesa. A pretinha aqui vai embora e agradeça a Deus por eu não prestar queixa!"
"Garota, pare de ‘mimimi’. Só porque é pretinha, fica fazendo drama."
- O ódio me espinhou. Ela levou um tapa também. Não teve nem forças de revidar. O segurança veio na minha direção. Mas não fez nada. A menina reclamou, dizendo que “apanhou por nada dessa pretinha aí” e eu deveria sair da festa. O segurança, de braços cruzados, se manteve firme e disse: “Okay. Mas tu vais sair junto.” Amiga, já havia uma boa plateia. A menina ficou perplexa com o que ouviu dele. Perguntou por que ela deveria sair e o segurança foi incisivo: “Ela agiu com violência física e a senhora agiu, com certeza, com violência verbal, que pode doer até mais”. A garota ficou muda. Sabia que tava errada. Ele não parou: “Pela sua cara dá pra ver que foi racismo, garota. Tente ser menos racista, senão esses tapas serão frequentes e merecidos”. A menina pegou o ex dela pelo braço e o arrastou pra longe. Mas sabe por que o segurança deu essa resposta, Melissa? Porque ele é preto. Preto como eu. Já passei por casos totalmente opostos com outros seguranças. Brancos. Mas, enfim, é por isso que eu não vou pisar naquele lugar. Não pelo bar em si, mas a lembrança não é nada agradável.
Melissa estava visivelmente desconcertada. Pediu desculpas à amiga pela insistência na presença dela na festa. Telma entendeu e pediu a ela que voltasse à boate e se divertisse. Não deu chances de mais nada. Melissa tentou falar, mas Telma impediu. “Eu não tinha te contado direito, Melissa. Tudo bem. Vá e aproveite”, num tom de ordem. A garota, então, se levantou e saiu. Não houve abraço, beijo, nem um “tchau”. Sem problemas. Não seria motivo de estresse para Telma.
Finalmente a série. A pipoca. Fria, mas tudo bem. O refri precisaria de gelo, mas tudo certo. Telma teve vontade de pedir uma pizza. Assistiria uma hora de filme e solicitaria pelo aplicativo. Deu o play e encheu a mão de pipoca. Contudo, com trinta minutos de filme, teve que abrir a porta novamente. Era Melissa. Além dela, mais dois amigos. Eles, no entanto, usavam trajes mais leves, quase pijamas.
Antes que Telma exigisse alguma explicação, Melissa e os outros jogaram as mochilas no chão. Um deles foi à cozinha para guardar duas garrafas de vinho.
– Tem mais pipoca, amiga? – perguntou Melissa.
– Tem, mas... O que vocês estão fazendo aqui? E a festa? – Telma, totalmente confusa. - E que roupas são essas? Não tô entendendo mais é nada...
– A festa vai ser aqui, ué? – respondeu Melissa, com simplicidade. – Eu não tinha entendido o motivo de tu não querer ir à festa. Aliás, eu deveria ter tido empatia logo de início quando tu disseste que foi por racismo. Tu também não entendeste que a festa não teria graça se tu não estiveres lá. Não é o lugar que faz a festa, somos nós. E eu só sei festejar se tu tiveres junto, então...
Foi difícil esconder a surpresa. Assim como foi difícil conter a lágrima.
– E a gente pode colocar uma playlist e dançar aqui, não? – sugeriu um dos amigos.
Melissa, com a mão na barriga, perguntou:
– Eu tava pensando numa pizza. O que tu achas?
– Topo! – concordou Telma.
– E nós trouxemos um vinho. Queres?

Comentários

@fabvin disse…
Como pode em um conto rápido me fazer passar por tantas emoções?
Ri, fiquei indignado, respirei fundo, e terminou tão bem e leve!
"Não é o lugar que faz a festa, somos nós", obrigado por fazer parte da minha festa nessa noite. Tu arrasa Victor Victório! ��
Tassiane Santos disse…
Amo demais esse conto!! <3
Quem dera que todos tivessem amigos assim!
Eu, pelo menos, adoraria :)
Quanta sensibilidade, quanta ternura, só podia ser escrito por vc.
Conto agradável e leve mesmo tratando de um tema pesado.
Parabéns e obrigado :)
Aline disse…
Amigo. Tu és foda! Que conto tocante e rico.
Linda a amizade e a forma de tratar de um tema tão vivido em nossos dias
Socorro Amorim disse…
Situações assim, infelizmente ainda são comuns.O conto nos remete a velhas memórias e não so ao racismo, mas a todos os tipos de preconceito.De forma leve vc disse tudo.Amei.Sucesso!

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