Conto: Fim de festa


(Inspirada na canção homônima de Jão)
(revisão textual: Tassiane Santos)

Seria um rolê daqueles previsíveis.
Ruan me convenceu a acompanhá-lo numa festa. Raíssa, a prima dele, teria uma espécie de “bota fora”. Iria morar em outra cidade, em Rios Claros. Seu pai conseguiu uma bolsa de mestrado e ela iria junto. Sentia que precisava de novos ares. Foi corajosa... Ruan, então, me chamou para ir à boate onde fariam a festa de despedida para a prima.
“Vamo comigo, Alan. Tu sabes que eu só me divirto quando tu tá junto. Vamo lá, cara!” insistiu Ruan, por meio de um áudio. Talvez nem fosse necessária a insistência. Era verdade: por mais que nós estivéssemos com uma tropa de amigos, a festa só tinha graça quando estávamos juntos. A falta de dinheiro não era motivo pra um furo, pois um pagava pro outro; quando não nos embriagávamos juntos, um cuidava do outro; e se um não estava no clima pra sair, nenhum dos dois saía. Ficávamos juntos, batendo papo, jogando videogame, tomando uma cerveja, chorando no colo do outro. Estávamos juntos. Juntos, literalmente. Mas esse juntos já não me fazia muito bem.
Éramos amigos íntimos, Ruan e eu, num estado em que o álcool comandava as nossas verdades, mentiras e os nossos impulsos que tremiam numa linha tênue de verdades e mentiras. Em meio a uma dança e outra, em que ele sempre tentava me ensinar a dançar um forró ou um brega, a intimidade extrapolou. Nessa de uma mão na cintura, um rosto colado, de uma liberdade indizível que somente poucos ou insólitos amigos tinham, nossos sorrisos se esbarraram e nossos olhares caíram em si. Nem Raíssa, nem nenhum dos nossos amigos se espantaram quando viram nossos lábios em deslizes hesitantes, de um jeito afoito, nas sem fugir à calma, sem fugir da vontade; de quem buscava pelo desconhecido, ou pior - e melhor ainda-, pelo perigo.
Em seus vinte e cinco anos anos Ruan teve seu primeiro beijo com um garoto. Esse garoto era eu. Apenas o primeiro. Desde então, ele não se esquivava das pegadas de outros caras, nem das investidas das meninas. Também ficou mais solto, a ponto de se enturmar com mais facilidade com quem nunca vira na vida. Embora eu sempre estivesse ao lado dele, era como se eu tivesse sumido. Em qualquer lugar que estávamos, em qualquer festa, nosso contato era somente no início. Depois, ele conhecia um grupo de amigos mais doidos que ele e/ ou até se pegava com um desses amigos; eu sumia. Sumia pra ele. Eu só “aparecia” no fim, quando ele lembrava que eu ainda estava por lá.
Cansado de tudo isso, preferi me afastar. Mesmo depois de um papo sério com Ruan, de que a gente precisava ficar um tempo distante, que eu me sentia desconfortável, era como se ele tivesse um quilo de cera no ouvido ou se fingia de otário. Dias depois da conversa, Ruan me ligava e eu caía naquele papinho sonso. Sabendo que, no fim, só sobraria pra mim, aceitei ir com ele à festa de despedida de Raíssa.
– Tu viestes, amigo! – comemorou Raíssa, com uma long neck de Devassa na mão. A boate Signos estava, como sempre, lotada. O público gay da cidade parecia se enfurnar todo ali. A comunidade viada pululava na pista de dança, no bar, na entrada, na saída, no banheiro; os fumantes, os não-fumantes, ou tímidos, os loucos, os que dançavam sozinhos, os que dançavam Ragatanga, os que bebiam com classe, os que ficavam bêbados só de cheirar o copo, os de cabelo curto, os de piercing, os de saia, os afeminados, os que "pareciam" hetero...  Mas não só os gays. Os héteros, convidados pela promoção de chopp, não se acanhavam; também se sentiam à vontade. Os caros héteros que eram cantados por gays já estavam acostumados e, no fim, viravam “parceiros de festa”. As meninas ficavam ainda mais à vontade. Quem entrava sem companhia na Signos logo se enturmava e/ou até dava um jeito de uma troca de saliva. Sozinho não ficava.
Ruan se mostrava mais exibido e estiloso: usando o All Star roxo que o presentei no aniversário passado, uma calça jeans velha que ele não largava pra nada e uma camisa preta com um Taz na estampa. “Ah, vou dormir na tua casa, tá, Alan? Esqueci e trazer a minha chave...”. Nada fora do habitual.
Como já era de se esperar, me perdi dele pouquíssimo tempo depois que chegamos na Signos. Até que o encontrei. Ruan mexia no cabelo enrolado para o lado, de um jeito que, talvez ele não desse conta, era puro charme. Não tinha noção do carisma e do potencial de deixar qualquer um louquinho com aquele sorriso que misturava o cinismo e a timidez. O sorriso se abria nos lábios levemente carnudos, desenhados a lápis de ponta grossa da Faber Castell.
Eu ainda tinha a sorte de sentir o gosto de Ruan nos meus lábios, mas quase sempre como segunda ou última opção, somente depois de ele rir das piadas de pessoas que acabara de conhecer, dançar com gente que nunca vira antes e beijar as bocas dessas mesmas pessoas. E, como na maioria das vezes, quando todas essas pessoas já se despediam, Ruan vinha até mim. Aos beijos e abraços, doido de bêbado, dizendo que ficou com outros caras, outras meninas, mas sentia um vazio em ficar com tanta gente. “Só me sinto melhor quando tô contigo” dizia agarrado no meu pescoço. E, como também na maioria das vezes, eu o levava pra minha casa, cuidava do amigo bêbado. Enquanto ele dormia na minha cama, quebrado de sono, eu me perguntava: “Eu já tô me cansando... Eu mereço passar por isso?”.
– É impressão minha ou tu ainda tá sóbrio, Alan? – me perguntou Raíssa, em tom de cobrança. Ela sim estava bebadoida, como diria a bregueira paraense. Raíssa se sentou comigo e me entregou uma long neck. – Já estamos quase pra ir embora e vejo que tu não tá te divertindo porra nenhuma! E eu sei o motivo. – ela mirou em Ruan, que estava com a língua presa na língua de uma garota. Linda, por sinal. – Tu devias ter dito “não”, Alan!
– Eu sei... – concordei, ainda fixo no casal, que já unira outra pessoa entre eles. Um cara. Com a mão na cintura da garota, e – aparentemente – a pedido dela, Ruan segurou o rosto do rapaz com a outra mão e o tascou um beijo. Num ímpeto de raiva, avisei Raíssa que já iria embora e me levantei. Num abraço emocionado, na briga com as lágrimas para não escorregarem dos meus olhos, nós nos despedimos.
– Se tu te saturares de tudo, vem morar comigo, Alan. Não perde tempo, não. – convidou-me Raíssa. Até que era uma boa ideia... Devolvi a long neck a ela e saí.
Enfrentei uma pequena fila para entrar no banheiro e, em seguida, fui ao bar. Pedi minha última Devassa e segui para a porta de saída da Signos.
Já do lado de fora, após o segurança cortar a pulseirinha do meu pulso, alguém me puxou pelo ombro. Era Ruan.
– Mano, tu tá indo pra onde? Aliás, por que tu sumiste? A gente nem bateu papo direito!
Fiquei puto com as palavras encachaçadas de cinismo. Ruan tentava me ludibriar?
– Tu tens noção do quão cara de pau tu és, Ruan? – perguntei, sentindo a raiva me engatar. Ruan abriu os braços e, mesmo eu me afastando, me abraçou. Tentou um beijo, mas minha hesitação só permitiu um selinho. A minha cara amarrada Ruan já conhecia bem. Seria fácil me desarmar e ele logo a fez: – Não fica puto comigo, cara. Tu sabes que eu te amo...
Balancei a cabeça negativamente, com um riso irônico.
– Me amas? Me amas quando? Quando a festa acaba? Quando teus novos amigos vão embora? Quando teus novos ficas vão embora?
– O que é que tu tá falando, Alan? Isso e só coisa de momento, é só agora. – respondeu, com o olhar em labirinto de álcool. – Tu sabes que tu é que é meu parceiro, tu que me ouve, tu que...
– Sim. Exato. Eu que ouço tudo, todos teus desabafos, teus lamentos, até dos raros foras que tu levas, mas essa vontade de desabafar, de ficar comigo só vem quando todos os teus boys já foram, não é?
Meu tom de voz já se perdia entre a calma e a impaciência. Ruan percebeu e, pra não passarmos vergonha, aceitei ser arrastado pra um canto. Sentamos num banco de madeira de estilo clássico. Ruan me pediu desculpas e me abraçou. Nesse abraço, o aroma do corpo dele, de pele, do amaciante que eu conhecia bem pelas suas peças de roupa, pelo perfume tão peculiar de anos... tudo se misturava no odor de bebida e cigarro. O cheiro que me levava às lembranças de tantos abraços, de tantas danças, de uma intimidade que nem conhecíamos direito... Fui vencido. Meus lábios também. Lentamente, me entreguei ao úmido beijo de Ruan, como se nada mais houvesse no mundo. Bravo não com ele, e sim comigo, afastei-o. Percebendo que eu o repreenderia, ele se desculpou.
– Foi mal, cara. Eu sei que eu tenho pisado na bola contigo. Tu és incrível demais. Tá sempre me acompanhando em tudo, pra todos os lugares e eu sempre sendo um ridículo. Tu tens razão de se chatear comigo, Alan.
Suspirei fundo, exigindo de meus pulmões como nunca. E, novamente, tentando segurar as lágrimas, mas por outro motivo.
– Eu não tô chateado contigo. Tô chateado comigo. – declarei. Ruan me olhou confuso. – Tu sabes que desde que a gente começou a ficar muita coisa mudou. Pra ti poderia ser algo novo, diferente, eu sei que foi, pois tu te jogaste no mundo depois que ficou com um cara. Se viu mais livre. Fala, brinca com todo mundo. O barman, o segurança te conhece, a gerente da festa te conhece. Tu te tornaste mais sociável ainda. Eu já percebi que sozinho tu não dá conta. Anda em bando, descarado, camuflado, descarado, fazendo festa. Tu te sentes em casa. Mas eu não sou assim! E tu te afastaste de mim. Não vem dizer que não: tu só percebes que eu tô do teu lado no fim da festa, quando não tem mais ninguém pra te paparicar. Eu só sirvo pros teus restos, pro fim da tua glória. Aí sim, somos nós dois. Mas só aí somos nós dois. E isso tá me fazendo um mal do caramba! Porque... Mesmo me considerando a tua cerveja quente, a mais barata, ou seja, a última opção sempre, mesmo me doendo por sempre tá me entregando com tanta facilidade, te ouvindo, às vezes, até te ouvir chorar por outra pessoa, mesmo assim, eu tô . Eu tô aqui.
– Alan, eu... Eu não sabia que...
– Eu já tinha te falado! Mas parece que tu não me ouves! Tu te fazes de besta!
– Desculpa, cara... – Ruan me pegou as mãos – tu sabes que eu te amo e...
– Que amor, doido?! Que amor? Só se for um amor de fim de festa, porque tu só liga pra mim depois que já rodou a festa toda! E tu sabes o que é o pior? Antes de sermos ficantes, nós somos amigos! E tu sempre foste assim: livre, frio, mas agora tá pior! Eu de coração aquecido, tu de coração gelado, como tu dizes sempre. Antes eu me achava um azarado por tá nessa situação, mas já penso que não é azar. É burrice! Sou eu quem sempre enxuga a lágrima no final. A minha e a tua.
Pronto. Desabafei. Disse tudo o que estava preso.
– Não, não é burrice. – discordou Ruan, recuperando a sobriedade. – Eu que sou o burro por te tratar desse jeito, Alan.
– Mas eu permito. Permiti que essa amizade se transformasse em outra coisa. Me permiti me entregar. Aí eu chego em casa e me pergunto: “O que eu fiz pra merecer esse amor de fim de festa?”. E há amigos nossos que pensavam que a gente formaria um belo casal, que a gente já forma um belo casal. Mas, como eu já disse, é só um amor...
– Não é amor de fim de festa, somos mais que isso. Tu sabes. O que a gente tem é diferente. Mas se tu acha que é melhor a gente se afastar... Eu não quero te fazer... Tu não mereces. Tu, menos que qualquer pessoa, merece isso.
– Sabes o que eu quero? Quero ir pra casa. Antes que tu me destruas. Ou antes que me destrua.
Ruan olhou para baixo. Me soltou. Esticou as pernas. Com um olhar tristonho de criança que perdera seu brinquedo preferido, disse:
– Acho melhor eu não voltar contigo hoje.
– Tu tá bem por... Ah! – gritei, decepcionado comigo mesmo – Tu tá sem chave, lembra?
– Eu vou pra casa da Raíssa...
– Não. Vem comigo.
Ruan me olhou sem graça. Pedi o Uber em silêncio.
No carro, agíamos como dois desconhecidos. 
Como se fôssemos apenas dois colegas de faculdade, Ruan se ofereceu pra dormir no sofá. Seria a primeira vez que, após uns três anos juntos, não dividiríamos a mesma cama. Em pé, com um “boa noite” de um jeito hétero, ele estendeu a mão e eu a apertei. Rindo, a intenção era fazer um “soquinho”, ou seja, bater os punhos, mas os nossos olhos se encararam mais uma vez. Nossos lábios se encararam. E, novamente, me entreguei. Me deixei levar.
Deixei que minha mão o cercasse na cintura enquanto a mão dele segurava meu rosto como se eu tivesse prestes a fugir.
– Talvez seja melhor... – Alan começou, com os olhos fechados e os lábios se abrindo pros meus. 
– Eu me odeio por isso. – soltei. Prendi-o mais em mim. Eu sentia o perfume dele se deleitar nas minhas narinas, trazendo toda a sensação que era de tocá-lo no abdômen firme e me levar a antigos flashes, de como era fácil entrar, mas difícil sair daquela armadinha. Não era ruim ser aprisionado, ser refém... Eu já estava encurralado antes disso. Tentar a liberdade seria à toa. E nem era o que eu queria de verdade, era sempre o que eu esperava. Ruan me calou a boca com sua língua me atingindo como fogos numa cachoeira fria. A gente se segurava com mais firmeza, nas mãos, nos lábios... Eu me sentia dele só de sentir o cheiro... O amaciante ainda estava fixo... O perfume impregnado. Era mais intenso que o amargo da cerveja. 
Novamente, me sabotei. Me permiti ser o amor de fim de festa.




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