Conto: Amigos do Crime (Capítulo 2)

Capítulo 2 – A Rua 8
(revisão de texto - Jéssica Katarina)

A coluna de Lisandra reclamava de dor. A bunda indiscreta sofria no suporte da bicicleta e por muito pouco seu celular não caiu do seu bolso da calça jeans, mas o incômodo com a posição torta foi se amenizando à medida que saiam do bairro  das Chicas e entravam nas ruelas que ela sempre evitava passar por perto. Lisandra se segurou firme na descida em uma rua baixa e seu traseiro sofreu as consequências outra vez com as pedras, poças e pedaços de pau. Osví acelerava propositalmente.
- Ei, não dá pra ir mais devagar?! – Lisandra gritou, com a bunda dolorida.
- Se não aguenta isso, não vai aguentar nada do que te espera!
- Eu só não quero mais sentir esse ferro batendo na minha bunda! - berrava, indignada. Osví soltou uma gargalhada espalhafatosa, irritando-a. – Por que você tá rindo?!
- Nada. Deixa pra lá!

Osví curvou outras ruas e Lisandra já não se sentia mais em um ambiente familiar. As pessoas festejavam o Natal profanamente, assim como os amigos ricos de seu pai, com a diferença que os empresários, médicos e outros paletozados não ouviam tecnobrega ou funk. Também não usavam camisa regata ou de times de futebol, nem cheiravam maconha na cara limpa, nem tinham tatuagem de caveira nos braços musculosos ou magricelos; e as mulheres não tinham as banhas pulando para fora da blusa, nem vestiam as roupas mais bregas e tampouco batiam nos filhos às chineladas em público. Estava perplexa. E eufórica.
- Já se arrependeu, não foi? – inquiriu Osví, zombando-a com um sorriso brejeiro.
- Nem um pouco. – respondeu com franqueza. Havia imagens de Papai Noel nas portas das casas, pisca-piscas e outros enfeites de segunda mão. Os ritmos musicais se misturaram e Lisandra não sabia distinguir o som. A Rua 8 – ela leu na placa ao entrarem – era um formigueiro. As pessoas eram as formigas que não trabalhavam. Elas curtiam a noite como se o dia seguinte fosse o último de suas vidas. Osví pulava as calçadas e entrava em outras ruelas. Os pivetes que fumavam cigarros nas esquinas eram mais sinistros que este que a levava na bicicleta. Um ou outro gritava por ele. Osví respondia apenas com um aceno.
A bunda de Lisandra comemorou quando se soltou do ferro. Osví jogou a bicicleta em frente a sua casa e a chamou para entrar. A garota observava a multidão como se admirasse uma obra de arte num museu. Não havia banda tocando, havia carros automotivos e vizinhos explodindo caixas de som. Lisandra freou os olhos nas mãos dos rapazes. Os bolsos tufados. Boné virado para trás. Bigode crescido. Fumaça fugindo de suas bocas. Deviam ser tão delinquentes quando Osví.
- Quem é essa garota?! – gritou uma senhora de cabelos em farrapos e um corpo descuidado.
- Ah mãe... – lamentou Osví. Ela segurava um copo de cerveja e estava abraçada a um armário em forma de homem. O típico negão que assustaria qualquer criancinha. A mãe de Osví analisou Lisandra da cabeça aos pés, se soltou do homenzarrão e puxou o filho pelo braço. – Você sequestrou essa garota?! Você é doido! Quando descobrirem...
- Calma, Elzira. – pediu o negão.
- Ela quis vir comigo, mulher! A culpa não é minha! – Osví se defendeu.
- O quê? – ela se virou para Lisandra.
- É verdade. Eu me sequestrei. Vim porque quis. – gabou-se Lisandra. A mãe de Osví a olhava como se descobrisse que ela tivesse uma doença contagiosa e a transmitiria com o sorriso triunfante. Lisandra julgou as aparências. Como Osví era branquelo com cabelos loiros e tinha uma mãe morena, de cabelos pretos e com um rosto envelhecido. Não dos anos que lhe foram levados, mas dos anos que a restavam e nada foram desfrutados.
- Ele é seu pai?
- Ele quem? – Osví se espichava para averiguar as cabeças na multidão.
- Esse ao lado da sua mãe.
Osví olhou de Lisandra para o homem que engolia sua mãe com a boca e respondeu:
- Não, não é meu pai. Meu pai morreu quando eu tinha 7 anos numa troca de tiros entre vizinhos.
Lisandra se silenciou, constrangida.
- Não acredito que você me achou parecido com esse cara. – reclamou Osví.
- Não! Por isso te perguntei!
- Não faço ideia de quem ele seja. Minha mãe não sossega o rabo dela. – com indiferença. Osví levantou a mão e fez sinal de OK para alguém que Lisandra não pôde ver quem era. Uma cartela de cigarro e um isqueiro foram jogados e amparados por ele, depois devolveu a cartela. Osví acendeu o cigarro e tragou, de olhos fechados.
- Eu quero.
- Quer o quê, oh doida? – Osví, impaciente.
- Experimentar o cigarro.
Os pais de Lisandra a proibiam de ingerir bebida alcóolica e fumar cigarros. Quando não estavam por perto, ela bebia tudo o que a oferecessem. O porre mais impactante que teve foi com vodca pura. Afetada pelo álcool, ela beijou Selton, o antigo namorado de Brícia na festa de formatura da irmã da amiga, ficou seminua em cima do palco e vomitou atrás da cortina de seda da parede. Foi o que relataram. Lisandra não se lembrava de nada. Fumar, porém, nunca teve a chance.
- Garota, isso é um vício! Se você fumar uma vez...
Lisandra tomou o cigarro dos dedos dele e pôs na boca. Sem saber exatamente o que estava fazendo, sugou o ar no cigarro e o soltou no ar. Um arranhado na garganta a fez tossir como um tuberculoso. Foi devastador.
- Tome. – entregou o cigarro a Osví.
- Já vi patricinhas que nem você fumarem melhor. Você é riquinha mimada das mais fraquinhas.
- Ah sou. Sou sim. Posso pegar um porre de catuaba, mas fu...
Lisandra sentiu um tremor no corpo inteiro com um sussurro no seu ouvido: “Putinha nova na área?”. Ela não pestanejou. E, seja lá quem fosse, conheceu a força do tapa da riquinha mimada.
- Puta é a sua mãe, seu safado! – xingou Lisandra, virando-se e encarando o marginal a sua frente. A cabeça quase raspada, se não fosse por duas linhas retas na careca, uma cara mal encarada, um cavanhaque alinhado e um piercing na sobrancelha do olho esquerdo. Um corpo magro, porém com um tanquinho à mostra. O rapaz, que lembrava um bandido, tinha um charme que estava em falta entre o círculo social de Lisandra. Razoavelmente arrependida, ela tocou no rosto dele e tentou se desculpar, mas a ele segurou com violência no pulso e afirmou com convicção. – Você não é daqui. Você não é do nosso beco!
- Como você sabe? – Lisandra perguntou, com o pulso dolorido.
- Pelo seu perfume. É perfume caro. De gente rica, daqueles que eu vendo no camelô.
- Você me reconheceu pelo perfume?
- Não só pelo perfume. – ele a soltou.
- Mas pela atitude. – continuou Osví, abrindo um sorriso heroico. – O Tabaco tá acostumado a receber uns beijos de umas garotas fáceis, mas você tirou esse prazer dele. Obrigado, riquinha.
- Tabaco? – Lisandra forçou-se a não rir. – Nem vou perguntar o porquê do apelido.
- Sua patricinha filha da puta,. - Tabaco a pegou pelo braço de novo - sabe o que eu faço quando levo um tapa desses?
- Não faz nada. Ela tá comigo. – Osví o afastou dela. A boca de Tabaco se contorcia de espanto.
- Antes que pergunte, eu quis vir com ele, tá legal? – Lisandra se antecipou. Osví jogou o toquinho de cigarro no chão.
- Então você não é puta? – Tabaco perguntou, ainda duvidando de Lisandra.
- Não.
- Nem bandida?
- Não! Por que? Só porque sou negra eu tenho que ser bandida?! – Lisandra gritou enfurecida. Ela já chamava a atenção das pessoas ao redor, mas Osví os levou para dentro da sua casa e resumiu a história para Tabaco, que foi apresentado à garota como “amigo do crime” de Osví. Enquanto Osví explicava a Tabaco que pulara o muro do casarão, Lisandra se viu cobrindo o corpo sarado do bandido com os olhos. Nenhum homem a tirou do sério como aquele.
- Você tá bem, riquinha? – perguntou Osví. Ele e Tabaco a olhavam com um ar de preocupação.
- Dá pra me chamar pelo nome? É Lisandra e você sabe!
Os dois a ignoraram. Tabaco, por fim, lembrou a razão de ter ido procurar Osví.
- O japonês tem uma missão pra gente. Ele ta num condomínio de rico, numa casa cheia de playboy. Sem pai, sem responsável algum. Se a gente chamar os outros dois pregos, a gente pode se divertir um pouco. Ainda são três horas. Temos tempo.
- Vão assaltar uma casa num condomínio? – Lisandra, empolgada. – Eu quero ir com vocês!
- Eu vou é te deixar em casa, isso sim, garota! – berrou Osví.
- É LISANDRA!
Osví a ignorou e voltou a dar atenção a Tabaco.
- Não vai ser fácil entrar no condomínio, mas o japonês contou que das duas casas ao lado, nenhuma está ocupada. Todos estão viajando. É a sorte grande!
- A gente vai no carro do Tucano. – sugeriu Tabaco, tocando no seu próprio abdômen.
- Vai ser difícil assim mesmo. – insistiu Osví.
- Verdade. – concordou Tabaco. - E nesse tal de Coqueiro Verde a portaria pede tanto do documento...
- Coqueiro Verde? É esse o nome do condomínio? – Lisandra arrumou os cabelos crespos ao fazer a pergunta. Ela se sentia vitoriosa antes da vitória.
- Sim. – respondeu Tabaco, massageando o próprio peitoral. Lisandra desejou que ele parasse de fazer aquilo. - Por que? Vai dizer que você conhece alguém que mora lá, oh patricinha?
- Conheço. O ex-namorado da minha amiga Brícia mora no Coqueiro Verde, o Selton. E eu sei como vocês podem entrar lá.
- Sabe? – ambos perguntaram em uníssono.
- Sei. E posso dizer como se vocês me levarem junto. – elaborando um plano atrapalhado.
Os dois se calaram.
- A família dele tem dinheiro pra caramba! – contou Lisandra. – E é muito fácil de entrar lá se vocês forem comigo!
- Mas... – Osvi tentou.

- Não se esqueçam que eu sei o podre de vocês. Sei onde vocês moram, o que vocês consomem. E não se esqueça que o meu pai é policial, Osví. Nem que eu morra aqui nesse fim de mundo, mas vocês morrem em seguida. – Lisandra os colocou contra a parede, corajosamente. Mas Osví e Tabaco continuaram mudos. – E aí? Vocês vão me levar ou não?! 




Comentários

"Só porque eu sou negra, sou bandida???"
Hahahahahahaha
Tá muito legal, Victor!
Fiquei super fã desse conto, tá ficando cada vez melhor!

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