Novela: Ardente Traição. Capítulo 5 (Último)



Ardente Traição – Capítulo 05

Um grupo de umas dez mulheres dançava uma coreografia exótica e sensual. A saia curta exibia as pernas grossas e cheias de poder, de magnitude. Os olhares concentrados, determinados eram a prova de como elas trabalhavam bem e sentiam na alma a arte da dança. Até que cinco dessas mulheres saíram do palco e entraram cinco homens; também com as pernas seminuas, mas com uma camisa bem comportada. Eles tinham sintonia e equilíbrio ao lado delas, dos seus pares, e eu com inveja porque no meu corpo não cabia nem a metade de tanto gingado. Uma delas piscou para mim e meu sorriso brotou. Aisha, apesar do foco na dança, notou minha presença e quis que eu percebesse. Não consegui mais apreciar o espetáculo.
A ansiedade me ocupava o peito mais uma vez. Tudo o que eu queria era que Aisha saltasse do palco e me arrancasse dessa ansiedade; me acolhesse em seu colo, nos seus braços, no seu cheiro e me afogasse com seu perfume e seus cabelos vermelhos, suada, com as pernas doloridas e os braços pesados, carregados de tanto que se moveram naquela dança envolvente. Porém, eu teria que esperar mais alguns minutos para tentar tê-la comigo e apagar o fogo que me emanava desde aquela noite.
- Como ela é linda! – pensei alto demais. Meus olhos acompanhavam o ritmo e o molejo de Aisha.
- É mesmo. Muito linda! – concordou um homem ao meu lado. Um homem negro, meio magro e de olhar vidrado na ruiva. – Pena que eu já vou ter que ir. – levantou-se e saiu. Tive a impressão de que ele estava mesmo admirando Aisha, mas isso era comum. Afinal, como não repousar os olhos nela?
A música foi enfraquecendo aos poucos e os dançarinos saíram do palco sem perder o ritmo. As mulheres derramaram delicadeza em seus últimos passos, bradou-se o silêncio quando elas finalizaram a dança e logo em seguida ele se quebrou com o berro dos efusivos aplausos. Uma senhora que estava atrás de mim me forçou a levantar e aplaudir. As dançarinas agradeciam com gestos e seus sorrisos sinalizavam cansaço e alegria. Ainda dançando, elas se retiraram do palco, assim como a plateia. Mas eu não o fiz. A última pessoa passou pela porta, mas eu permaneci ali, sentado. Eu tinha que falar com Aisha.
Eram onze e meia da noite quando ela, enfim, desceu as escadas do palco e foi até a mim, empolgada. Recebi um abraço apertado de Aisha, eu o aproveitei o que pude. Cada toque do meu corpo no dela era precioso. Era incontável. Ela vestia uma calça de malha fina e uma camiseta jogada. Seu corpo estava suado e seu cabelo vermelho amarrado. Nem por isso Aisha perdia sua sedução. Isso me deixava tonto.
- Você vai pra onde agora, Narciso? – Aisha perguntou, interessada. Nem parecia a Aisha brava que me recebeu na festinha de dois anos de Samuca.
- Vim te ver. Você estava espetacular.
- Obrigada. – agradeceu, radiante. – Vamos comigo pra casa. Ou você tem que ir embora?
- Vou pra onde você for, Aisha.
- Ótimo. A Mila já cuidou muito do Samuca por hoje. Merece um descanso.
Ouvir o nome de Mila me bateu um remorso, um arrependimento. Mas não era hora para pensar em outra mulher. Ou no que eu fiz com outra mulher, ainda que essa mulher fosse a babá do meu filho.
De mãos dadas, Aisha me levou até seu carro. Fomos até o prédio dela e cada um foi no seu. Enquanto dirigia eu tentava imaginar o que se passava pela cabeça da ruiva que tanto me fascinava. Aparentemente, tinha um interesse sugestivo em mim, ou não me chamaria para ir à casa dela, e com tanta animação. Talvez fosse ilusão. Ou não. Eu saberia em alguns minutos, logo que eu estacionasse o carro próximo ao prédio dela e subisse em seu apartamento.
No elevador, Aisha me relatava o quão estava ansiosa para a realização daquele espetáculo. Os ensaios foram intensos, e ainda assim ela ainda teve outras apresentações durante a semana. Um convite, naqueles dias, surgiu para a companhia de dança que fazia parte: se apresentar fora do estado, tudo patrocinado pelo governo. Ainda não estava confirmado, mas as chances eram deles, e ficariam quase um mês fora de Dia Branco. Levei um pequeno susto com tal informação, mas tentei não pensar nisso.
Para espantar tais pensamentos, Mila apareceu na sala para avisar que estava indo dormir em seu quarto. Ao me encontrar, desejou um “boa noite” com uma piscadela. Constrangido, desejei o mesmo. Aisha tirou os sapatos e foi até a cozinha. Voltou com uma garrafa de vinho em uma mão e duas taças na outra. Ela nos serviu e, ainda bem acalorada, brindou àquela noite. Após um longo gole que quase secou o vinho da taça, Aisha, com um curioso sorriso, perguntou-me:
- Então você conheceu o Adriano, não foi?
Coloquei a taça na mesa e perguntei quem era o tal Adriano. Com o mesmo sorriso de antes, Aisha respondeu:
- Adriano, meu namorado. O cara que estava sentado ao seu lado na plateia era meu namorado.
De repente, tudo se encaixou. “É mesmo. Muito linda. Pena que eu já vou ter que ir”. Foi um comentário de um cara apaixonado. E eu, o bobo, tão alucinado por Aisha quanto ele, nem percebi nada. Senti-me um verdadeiro idiota ali na frente dela. Tive vontade de sair correndo. Apenas vontade.
- Bom, ele ainda não é meu namorado. Mas vai ser. – consertou-se Aisha. E fiquei ainda mais confuso.
- Como assim “vai ser”? Ele é ou não é? – inquiri, servindo-nos de mais vinho. Ela segurou na minha mão e me levou até o sofá. Aisha respirou fundo, bebeu mais um gole e me explicou:
- Adriano e eu estamos ficando já tem um tempo. Sei que ele está muito interessado em mim e eu também estou interessada nele. Sei também que ele vai me pedir em namoro amanhã.
- Amanhã? Ele vai te pedir em namoro amanhã?– minha depressão carregando minha voz. – E como você sabe?
- Tô ficando amiga da prima do Adriano. Ela me antecipou. – contou, pensativa. – Era pra ser surpresa, mas ela não aguentou e me contou logo.
- Meio estraga-prazer a prima dele, não?
- Um pouco. Mas a Raquel é uma pessoa bacana. Eu gosto dela. – disse com sinceridade.
Raquel? Era coincidência demais. Havia inúmeras mulheres com esse nome no mundo. Até numa cidade pequena como Dia Branco. Arrisquei na pergunta:
- Raquel... Raquel? Por acaso essa prima do seu futuro namorado... Por acaso você deu um convite para ela assistir a sua apresentação de hoje?
- Sim... – Aisha respondia com um ar de surpresa. – Ela disse que iria deixar o cabelo mais curto. Eu queria ver como ficou.
- Curto? Ela é uma negra, alta e é bonita... E que... Tinha um notebook com defeito?
- Notebook com defeito? Sim, eu até indiquei que fosse... – e parou de falar. Aisha pôs a mão na boca e soltou uma risada.
- Foi você que indicou a ela que fosse na Associação dos Computadores? – fiquei impressionado. Ela assentiu. – Mas naquela época você ainda me tratava mal pra caramba. Como pôde me indicar?
- Olhe, Narciso, não faz tanto tempo assim para você dizer “naquela época”. Mas sim, eu te tratava mal porque eu achava que você tinha me traído, mas você é o pai do meu filho. Você lucrando, ele lucra também.
A explicação dela fazia sentido. Era a hora de ser sincero. Já estava passando da hora. Sequei a taça de vinho.
- Foi Raquel que me deu o ingresso para assistir a sua apresentação de dança.
- Ah, que bom! – e levou a taça à boca. Também levei. O álcool me ajudava a ser ainda mais sincero. – E que coincidência! Você sabia que Raquel conheceu a Taila também? Taila ainda estava na dúvida se terminava ou não com Roan. Nós três trocamos muitas figurinhas sobre esses assuntos...
- Ah, então já entendi algumas coisas...
- Que coisas?
- Deixa pra lá, Aisha. O que você precisa saber é que... Raquel e eu tivemos um caso. Curto, mas tivemos. Nós não fomos pra frente porque eu ainda tinha esperanças que você e eu poderíamos voltar a namorar, Aisha. Principalmente depois daquela noite...
- Por isso ela me fez algumas perguntas sobre meu “ex-marido”, se eu ainda gostava dele... Mas, Narciso...
- Ela me disse para eu não desistir de você. Me disse isso duas vezes. Agora ela tá lá com o Roan; conheceu ele ontem no Bar das Onze, provavelmente... Mas acho que vão se dar bem... E eu tô aqui. Fui te ver hoje pra isso. Pra dizer que tô agoniado, que eu tô angustiado. Que eu tô voltando a me apaixonar por você. Aquela noite veio só pra aumentar a chama em mim, aumentar esse fogo. E eu quero saber por que a gente não se dá uma chance? Por que a gente não ama o que tem pra se amar? E nós temos muito amor guardado e tá na hora de tirá-lo da gaveta do nosso coração e bagunçá-lo em nós dois de novo.
- Narciso... – ela tentava, aflita.
- Eu queria entender o que é há comigo e com você! Eu não te traí, você sabe. Você tem a minha palavra. Desde aquela noite não tenho mais sossego, Aisha. Eu tô pronto pra te amar de novo, ainda mais que antes. Mas isso não depende só de mim. O que eu queria era namorar você, ter o nosso caso. O nosso caso, em que só haveria nós dois e ninguém mais.
- Narciso...
- Eu tinha que te dizer tudo isso, pra tirar esse turbilhão do meu peito. Mas o melhor que eu tenho a fazer agora é ir embora. – e me levantei. – Você vai aceitar esse namoro amanhã e...
- NARCISO! ME ESCUTA, PORRA!
Aisha se levantou e derramou as taças de vinho. A bebida se espalhou pelo chão da sala, mas ela nem deu importância. Era hora de eu desistir. 
- Você entendeu bem: eu não vou voltar a namorar você porque amanhã, possivelmente, eu estarei em um compromisso sério com o Adriano.
- Isso. Joga na minha cara, joga. Pisa no meu coração. Ele já não tá valendo muita coisa mesmo.
- Deixa de drama e ouve. – Aisha me segurou pelo braço.
Bufei. Eu já não tinha mais nada o que fazer naquele apartamento. Perdi toda a esperança. Aquelas sardas na bochecha e os cabelos avermelhados não teriam mais os meus toques.
- Diga, então.
- Eu não vou voltar a namorar você, Narciso. Quando nós dormimos juntos naquela noite eu já estava com o Adriano, mas... Mas não sinto por você agora o que eu sentia antes. Não para um namoro. E o que você sente por mim não é paixão. É orgulho ferido porque te deixei, te julguei mal e sem te dar outra chance. Mas não é paixão e menos ainda é amor.
- Para com isso. Deixa eu ir. Eu não tenho mais nada pra fazer aqui.
- Ah, tem sim.
Aisha me puxou para junto dela e me beijou. Ela não deixou que eu saísse, que eu fugisse e me ocupou em seu corpo, nos seus braços, no seus lábios, no seu cheiro e preencheu os espaços vazios do meu corpo. Me acalmou dos pés à cabeça. Da alma ao corpo. Da calma à pressa. Era daquele beijo que eu precisava. O beijo de Aisha era a arma para me desarmar. Ela atirou em mim e eu fui atingido em cheio. No corpo todo. Uma cicatriz que não cicatrizava, ou menos que iria demorar para cicatrizar.
Depois que nos beijamos, Aisha me sorriu.
- Não entendi. Você vai trair seu namorado?
- Você que não entendeu nada, Narciso: Adriano e eu ainda não estamos namorando. Não vou trair ninguém. Não sou mulher de trair.
- Não, é? - num tom sarcástico. 
- Não. – e eu a beijei. Enquanto o beijo nos dominava, tirei sua blusa suada e nos deitamos no chão. O cheiro do vinho nos alcançou e influenciou. Não interrompemos o beijo. Ele não merecia interrupção. Não seria justo. Nossos lábios estavam numa relação séria, de extrema cumplicidade.
Nossos corpos estavam colados de suor, de adrenalina. Nada os impedia. Estávamos nus. Estávamos livres. E a nossa liberdade era tudo, especialmente sexual. Aisha me tocava o corpo com seu corpo e não me deixava aterrissar. Eu estava em outra dimensão. A minha compreensão estava se despedindo.
Eu estava por cima de Aisha, quando falei em seu ouvido:
- Vamos aproveitar a nossa última noite juntos, então.
- Não pense nela como a “última noite juntos”. Pense nela como “uma noite juntos”. - beijando-me o pescoço.
- Mas você disse que não iria trair... Que não era mulher de trair. – lembrei, com dificuldade. Os beijos nela me inebriavam.
- E não sou mesmo. Mas eu não sou de ferro. Ser humano nenhum é de ferro. Ser humano nenhum corresponde fielmente à fidelidade. É um defeito nosso.
- Então quer dizer que... – sussurrei em seu ouvido.
- Eu não serei sua amante, Narciso. Mas... – me puxou pelo pescoço e disse, beijando-me a orelha. – Não serei sua amante. Não serei amante de homem nenhum. Serei amante de mim mesma, da minha própria felicidade. E a minha felicidade tá no amor próprio, nos meus desejos, na dança e no meu filho.
- Nosso filho.
- Nosso. Nosso vínculo eterno. 
A alegria ao ouvir esse discurso não cabia na palma da mão. Beijei-a com a paixão que vazava do meu coração.
 - E foi como você me disse uma vez: – e me mordeu a orelha. – Você não quer fica na minha vida como uma paixão mal resolvida.
- Isso mesmo. – suspirei.
- Então não vamos resolver essa paixão, sem pensar no amanhã e muito menos nosso amanhã. Esse caso é só nosso. De nós dois e de mais ninguém, sem pretensões. Não é traição. Só será... – e me beijou no rosto. – Se a gente entender dessa forma.
- E eu entendo como eu quiser. – e desci até seu seio esquerdo. Ela gemia. – A gente não precisava resolver uma paixão mal resolvida.
- Não mesmo. Agora, cala a boca. – e me devorou num beijo. – Temos algo mais importante pra fazer. – e puxou meus lábios com os seus. O perfume dela se misturando com o suor do seu rosto e eu me permitia me perder nos desvios e desilusões do seu corpo; como quem se perde nas belezas e nos perigos de uma tentadora madrugada; perigosa, fria por fora, quente por dentro e muito desesperada.
E aquela noite se eternizou ali. Eternizou-se em cada beijo, em cada suspiro. Porque o que havia entre nós dois era algo só nosso. E de mais ninguém.



Comentários

Um desfecho inesperado e interessante. As grandes paixões nunca se resolvem, nunca terminam completamente. Um momento especial entre pessoas que se amaram/se amam não é traição, é algo inexplicável.
Personagens bem construídos, multidimensionais e situações factíveis. Boa descrição de cenários e diálogos.
MUITO MELHOR que o outro conto dos amigos sem caráter hehehehe
Parabéns Victor!

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